Palestina. O problema que o Ocidente criou e não pode resolver
Manuel Raposo — 27 Outubro 2023
As consequências políticas da operação do Hamas de 7 de outubro (com mais três organizações da resistência palestina) são hoje tão evidentes como eram imprevisíveis há quatro semanas atrás. Os ecos que teve em toda a Palestina mostram que a acção foi acolhida pelas massas populares como uma resposta sua à ocupação israelita, e não como uma intervenção desvairada de um qualquer grupo terrorista isolado da população, como Israel e o Ocidente querem fazer crer.
Uma causa com eco mundial
A causa da independência da Palestina não só foi reanimada como foi trazida para primeiro plano das questões políticas mundiais. Durante praticamente uma década, foi abafada deliberadamente pelo Ocidente, ignorada por muitos dos países árabes e desleixada pela própria Autoridade Palestina, acomodada em Ramalá. Subitamente, porém, todos estes actores foram obrigados a definir-se e a tratar do assunto.
A mobilização popular no mundo árabe e muçulmano foi maciça, forçando os governos renitentes a tomar o partido dos palestinos e a demarcar-se de Israel e dos próprios EUA, perfeitamente entendidos como os mentores do estado sionista e corresponsáveis pelos seus crimes.
Mobilização semelhante teve lugar no resto do mundo, nomeadamente nos países do arco imperialista, desde os EUA ao Reino Unido, a toda a Europa ou à Austrália — o que mostra que a causa da liberdade da Palestina não se confina aos palestinos. O valor político desta mobilização é evidente: todos os manifestantes sabem que apoiar a Palestina significa enfrentar o sionismo e o imperialismo.
EUA a falarem sozinhos
O isolamento dos EUA ficou patente na incapacidade para sequer conversar com países normalmente seus aliados, como a Jordânia ou o Egipto, na humilhação a que o secretário de Estado Blinken foi sujeito pelo governo da Arábia Saudita e no regresso de Biden a casa de mãos vazias quando pretendia juntar os adeptos do costume à sua volta.
Obrigados a apoiar Israel sem reticências, mas cuidando também de salvar a face diante das barbaridades prometidas por Netanyahu, os EUA revelaram-se como hipócritas em quem não se pode confiar e de quem não se pode esperar qualquer via de solução para o problema.
Ficou igualmente patente a vacuidade política da UE e da Europa em geral, não apenas pelas contradições entre os seus líderes, mas também pelo desprezo a que os seus emissários foram votados pelas lideranças árabes e muçulmanas. (Na verdade, está patente aqui também uma consequência do avassalamento a que a Europa foi sujeita pelos EUA na sequência da guerra na Ucrânia, não sendo de desprezar o facto de, com isto, os EUA perderem um ajudante que lhes poderia ser útil em momentos de grande crise, como é o caso.)
Forçados pelas circunstâncias
Diante dos acontecimentos, os dirigentes da Arábia Saudita e da Turquia, que ensaiavam manobras de aproximação com Israel, tiveram de recuar e declarar apoio aos palestinos. Erdogan sentiu-se mesmo obrigado a negar a natureza terrorista do Hamas e a reconhecê-lo como representante da resistência palestina, em clara afronta ao Ocidente.
Também o secretário-geral da ONU, António Guterres, normalmente dado a jogos de equilibrismo, se sentiu forçado a dizer o mínimo: que a acção do Hamas tem de ser compreendida à luz da “ocupação sufocante” exercida por Israel.
Nem mesmo esse mínimo impediu o ministro israelita dos Negócios Estrangeiros de soltar urros na Assembleia Geral da Nações Unidas e exigir a demissão de Guterres. Seria uma exigência solitária se não tivesse, entre nós, a colaboração prestimosa do Chega e da Iniciativa Liberal que, também neste particular, mostram o que os faz correr e que ideias professam.
Israel sem saída
A face terrorista do Estado de Israel e a mentalidade nazi dos seus governantes está patente nas próprias declarações por eles proferidas. Por trás da linguagem troglodita, fica a nu a incapacidade do poder israelita em olhar para o problema político que tem no colo, tudo se reduzindo, na sua óptica vesga, ao uso da força bruta para tirar desforra.
Mas em que medida e até quando a população israelita — que experimentou na pele a insegurança e a violência que antes de 7 de outubro parecia só atingir os palestinos — vai acreditar que a brutalidade prometida por Netanyahu é a solução para a sua vida?
O facto de os EUA terem tido necessidade de deslocar forças navais consideráveis para a região, e de terem já participado com tropas suas em incursões em Gaza, mostra que o imperialismo norte-americano não acha que Israel seja capaz de arcar com o problema, mesmo no estrito plano militar — levando em conta a amplitude regional das forças envolvidas, do Irão ao Líbano, da Turquia ao Iémen.
Por mais que Israel e os seus apaniguados no Ocidente queiram denegrir a resistência palestina com base no 7 de outubro, ou classificar o Hamas como terrorista para o desqualificar como força política, a evidência das imagens que relatam em directo o genocídio praticado pela tropa israelita suplantam tudo o que de mais violento possa ter sido feito pelo Hamas contra os israelitas.
Mais de sete mil mortos (*) e vinte mil feridos palestinos, na maioria mulheres e crianças, comparam mal, mesmo aos olhos mais inocentes, com os anunciados 1.400 mortos israelitas, dos quais mais de 300 terão sido militares e polícias. As pessoas comuns sabem estabelecer proporções.
Ocidente fora do baralho
A resposta que Israel mostra não ter capacidade para dar é, obviamente, de natureza política. O Ocidente cola-se a esta posição sem saída por necessidade absoluta de não perder a testa de ponte que desde 1948 tem no Médio Oriente. Mas isso afasta-o também, ao Ocidente, de ser interlocutor na busca de soluções para o conflito.
Cada vez mais, a questão israelo-palestina vai deixando de ser determinada pela acção exclusiva das potências externas à região, nomeadamente os EUA e a UE, para ser um problema dependente da intervenção dos actores regionais do Médio Oriente. É o que quer dizer a posição, se não unânime, pelo menos convergente de todas as potências e forças políticas da região — Arábia Saudita, Egipto, Irão, Turquia, Síria, Iémen, Iraque, Líbano e até o Paquistão — no sentido de defenderem o direito dos palestinos à independência.
A independência da Palestina tornou-se nas últimas semanas causa de todo o mundo árabe e muçulmano. A recusa do Egipto e da Jordânia em abrirem fronteiras aos palestinos de Gaza, empurrados pelos bombardeamentos israelitas — recusa esta que comentadores tão obtusos como manhosos acham uma negação do direito humanitário — compreende-se perfeitamente do ponto de vista político: fazê-lo seria facilitar a limpeza étnica (a “solução final”) que Israel leva a cabo à mão armada e criar condições para sapar o direito dos palestinos à sua própria terra.
Padrão comum
Há um padrão comum no comportamento do Ocidente imperialista nos dois grandes conflitos em curso.
Na Ucrânia e em Israel, não hesita em recorrer aos indivíduos e às organizações mais brutais, de natureza abertamente fascista e nazi se necessário for, para levar a cabo os seus desígnios de poder — desígnios estes que não representam nenhum caminho de progresso para a humanidade, nenhuma defesa de liberdade ou democracia em benefício dos povos, mas apenas a manutenção do estado de coisas vigente.
Na Ucrânia como na Palestina, os EUA e a UE, mais uns quantos aliados, mostram-se como o partido da guerra, incapazes de entenderem, e sobretudo de aceitarem, a trama política em que os conflitos se desenrolam. E não aceitam porque sabem que a evolução natural dos acontecimentos, se decorrer em termos pacíficos, conduz à erosão da sua hegemonia sobre o mundo.
Na verdade, o ocidente imperialista não se defronta apenas com as grandes potências que directamente o desafiam, a Rússia e a China — defronta-se com um número crescente de países e de povos que rejeitam a sua tutela e se agregam para ganhar força contra um inimigo comum.
A revolta palestina e a solidariedade que tem suscitado é a mais recente manifestação desta tendência global.
———
(*) 7028 mortos, segundo uma lista publicada no dia 26 pelo ministério da Saúde de Gaza indicando nome exacto, sexo, idade e número de identificação dos falecidos. O Hamas respondeu assim às afirmações provocatórias de Biden que pôs em causa o número de mortos palestinos vítimas dos bombardeamentos israelitas. Os números referem-se a Gaza, excluindo os mortos na Cisjordânia. Em Gaza, no dia 25, havia mais de 18 mil feridos, e mais de 1.500 pessoas, das quais 630 crianças, estavam ainda debaixo de escombros.
Números da Autoridade Palestina do dia 26 dão conta de 177.781 casas destruídas, 260 unidades de saúde atacadas, e ainda 1.900 feridos e 104 mortos na Cisjordânia.
Comentários dos leitores
•Teresa Alves da Silva 27/10/2023, 21:25
Acabei de ler o artigo, que considero muito bom pela clareza com que o texto define a actual situação. Nas noticias da noite , foram relatados factos que parecem ser indicativos de que a grande ofensiva do exercito israelita poderá começar já esta noite, apesar de ter sido votado favoralmente , nas Nações Unidas, por uma muita larga maioria de países uma proposta da Jordânia de haver pausa nas hostilidades com propósito humanitário face à situação humanitária em Gaza. Concretamente, foi noticiado que foi cortado , na faixa de Gaza o acesso à internet e telefones moveis....O cerco israelita aperta , com indiferença total aos "aconselhamentos" do Ocidente..
•leonel l. clérigo 29/10/2023, 11:19
Teresa Alves da Silva
1 - Deixe-me discordar. É muito possível que os "factos" também não permitam" que se tire tal conclusão: a grande ofensiva do exercito israelita. Até porque o "atafacho" seria de tal ordem incontrolável, coisa que ninguém quer, nem mesmo, no momento, o IMPÉRIO OCIDENTAL.
2 - Tudo o resto PARECE-ME "bluf", incluido na "táctica" do "amedrontar".
Mas se o sr. Benjamin Netanyahu optar por essa OFENSIVA, faz mal porque ou muito me engano ou o "ricochete" não vai ser coisa boa. Há muitas tácticas de luta e o TERRORISMO é uma delas. O nosso AFONSO HENRIQUES sabia disso a potes quando dava as sua "escapadelas" contra a "moirama".
•John Catalinotto 31/10/2023, 14:14
Mais uma excelente análise de Raposo.
Temos de ser sempre claros: os imperialistas, os opressores são os verdadeiros terroristas. Sempre.
Qualquer ação que o povo oprimido ou os trabalhadores explorados tomem é sempre um tipo de auto-defesa. Por vezes é desesperada. Por vezes, são bem planeadas.
Além disso, nunca acredite na narrativa do opressor. Lembro-me que em 1971 houve uma revolta numa prisão no Estado de Nova Iorque - a prisão de Attica. Os prisioneiros capturaram os guardas. Quando a polícia invadiu o local, os media disseram que os prisioneiros tinham cortado a garganta aos reféns. Era tudo mentira. A polícia entrou a disparar e os 10 reféns mortos foram todos abatidos pela polícia. Os líderes dos prisioneiros foram executados.
O que foi o 7 de outubro senão uma rebelião prisional?
Por vezes vale a pena debatermos tácticas. Mas enquanto o Estado israelita, uma extensão do imperialismo mundial, massacra milhares de pessoas em Gaza, o melhor que podemos fazer é oferecer solidariedade à Palestina.
•leonel l. clérigo 1/11/2023, 10:50
JOHN CATALINOTTO
Em momentos de CRISE PLANETÁRIA aguda propícios à possível queda e ascensão de velhos e novos PODERES - como os que nos tem sido recentemente dado viver - julgo e em meu fraco entendimento, ser SEMPRE de elevar a compreensão das variadas gentes sobre o "real" dos acontecimentos, geralmente presa de "conceitos" e "frases feitas" (o TERRORISMO, o OCIDENTE, a DEMOCRACIA...), um belo método para que os VELHOS PODERES que vão apodrecendo se tornem OPACOS e ETERNOS.
Por isso se costuma dizer que o CEGO É AQUELE QUE NÃO QUER VER. E também por isso, acaba geralmente em "CARNE PARA CANHÃO".
Saudações.
•antonio alvao 1/11/2023, 15:49
"O vosso Afonso Henriques" foi no seu tempo o Benjamim Netanyahu. Deu, a partir de 1128, continuidade a um genocídio que, só da parte portuguesa, durou 300 anos. Quando os cristãos tomaram Silves, as baixas dos habitantes da cidade foi à volta de 6.ooo, na sua maioria crianças, muitas delas ainda no ventre das mães.
A "invasão" conversão foi a pedido de Aguila, visigodo, pretendia derrubar o rei visigodo Rodrigo, acusava-o de muita coisa má, querendo ser ele o novo rei. Tárique-bérber, recomendava aos muçulmanos para que os cristãos fossem protegidos. E assim se implantou uma sociedade desenvolvida em todas as suas vertentes, inclusive a medicina; entre cristãos(maioria), muçulmanos e bérberes. Desapareceu a fome e a miséria. Fome, peste e miséria voltou depois com o poder cristão.
"D. Afonso Henriques não tomou Lisboa aos mouros; tomou-a aos cristãos -moçárabes- porque eram a maioria" (Claudio Torres, especialista em civilizações muçulmanas e não só). Na minha opinião a história oficial está mal contada e mal lida.
•leonel l. clérigo 4/11/2023, 17:00
ANTÓNIO ALVÃO
Só agora me apercebi do seu comentário acima e não discordo do modo como acaba ao afirmar que a nossa "história oficial está mal contada e mal lida".
De facto, também me parece que desde D. Manuel I e a longa "aliança" BRAGANÇAS/IGREJA - bem expressa na "boca foleira" do Cardeal de Alpedrinha a esse rei Manuel - a nossa História ainda está por fazer ou refazer: os nossos jovens merecem que lhes arejem as cabeças sem aldrabices descaradas.
Quanto ao resto, a discussão é longa.
•Adilia Maia 13/11/2023, 18:30
De facto, a História está mesmo muito mal contada, mas parece difícil furar o bloqueio porque a elite que tem nas mãos o poder material é a mesma que detém o poder intelectual que lhe permite criar as narrativas mais convenientes aos seus propósitos.
Não se pode perder pois o foco e o foco é a economia dominada pelo poder hegemónico do capitalismo. Portanto não basta esperar que os nossos jovens arejem as cabeças; tal não vai acontecer enquanto não conseguirmos construir uma alternativa viável ao capitalismo; e a esquerda continua muito desatenta e não parece apostar nesta prioridade.
Divulgar Marx, que viu longe e ainda hoje, infelizmente, é um dos poucos faróis na escuridão que nos oprime, parece-me fundamental; por isso proponho a leitura e reflexão sobre este excerto de A Ideologia Alemã, escrita, em colaboração com Engels há quase dois séculos:
“Os pensamentos da classe dominante são também em todas as épocas os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe do meio de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante. “ Marx, A Ideologia Alemã, p. 48, Martin s Fontes, São Paulo 2001.
•antonio alvao 14/11/2023, 15:14
Se me permitem, eu aconselharia ler, entre outras obras ... importantes: Marx depois de Marx - de Pierre e Monique Favre - (Dom Quixote); Que é o Socialismo? de Didier Motchane (Dom Quixote); e recentemente uma grande obra "Pedagógica" de Shlomo Sand. Eu digo pedagógica, porque este grande historiador - na minha opinião - trata os temas de uma forma etimológica, e vai às primeiras raízes de tudo. Para quem sofrer do preconceito ideológico, devo dizer que, nenhum destes autores é anarquista.
Se o estudo sobre o Movimento Operário for parcial e não etimológico, é fazer opção pela ignorância, que poderá levar-nos a cair no dirigismo autoritário e regimes não recomendáveis à emancipação dos trabalhadores.
Parece que, desde 1917, ainda não encontramos os conhecimentos históricos e ideológicos, das diversidades, dos ideais convergentes, no sentido de evitar erros do passado, e caminharmos juntos, por uma humanidade livre e igualitária.