Impressões sobre a campanha eleitoral
Urbano de Campos — 23 Abril 2025

A campanha eleitoral nem sequer começou oficialmente, mas o mote está dado acerca do desenlace que se dará a 18 de maio: ou ganha a direita assim, ou ganha a direita assado. A dúvida está no facto de as sondagens, até agora, não descartarem a possibilidade mais terrível para as gentes do poder: um empate. Ora, para que a indesejável instabilidade governativa não volte a colocar nuvens sobre o curso dos negócios, a distribuição de fundos europeus, ou os planos de uma economia de guerra, ensaiam-se hipóteses sobre o apoio que o perdedor mais forte deve dar ao fraco vencedor. Tirando isso, restam os temas menores para entreter o eleitor-espectador.
“Os portugueses” não queriam estas eleições?
Na verdade, a maioria dos portugueses – concretamente, os trabalhadores e as camadas populares, que formam a maioria do eleitorado – não dedicam a estas eleições nem mais nem menos interesse do que a tantas outras dos últimos 50 anos. Por uma razão fácil de entender: sabem de experiência própria que delas não resultará nenhuma alteração política que responda aos seus interesses mais básicos e mais imediatos, menos ainda aos seus interesses mais fundos e de longo prazo.
Sabem que as forças em condições de formar governo não os servem. Que as políticas enunciadas não diferem muito umas das outras. Que o poder será exercido como até aqui de acordo com os interesses dos poderosos que actuam atrás do cenário, os verdadeiros mandadores dos grandes partidos.
Descreem duma forma geral das eleições, não por sentimentos antidemocráticos, mas precisamente porque as instituições ditas democráticas não são democráticas no sentido básico do termo – não representam nem espelham os interesses e a força da maioria. Intuitivamente, toda a gente sabe que a democracia vigente é monopólio das classes dominantes (e por isso bem merece o apelido quase esquecido: burguesa, capitalista). Nada de popular nela existe.
Ninguém de bom-senso acredita que, com a actual relação de forças, se possa mudar o rumo político do país a favor dos trabalhadores por via de eleições. Nunca terá sido tão verdadeira a afirmação de que em eleições destas os trabalhadores são chamados a escolher os representantes das classes dominantes que os hão-de oprimir nos próximos anos.
Uma campanha “esclarecedora”, pretende Marcelo
A pobreza geral dos debates televisivos (a que na verdade ninguém liga, sabiamente) não chega a ser atenuada pela catadupa de comentários, de notações e de sondagens destinados a animar um circo que se sabe de antemão como acaba. Quanto mais vazias as propostas políticas, quanto mais desinteressantes as palestras, quanto mais nulas as diferenças, tanto mais os fabricantes de “opinião pública” se esforçam por inventar novidades e subtilezas onde elas não existem. Circo sem pão, este nosso, lusitano.
Não faltam partidos e nuances programáticas para todos os gostos. Mas, estranhamente, os que podem ganhar são os dois de sempre. E sabe-se que, entre um e outro, a diferença de anúncios e, sobretudo, de práticas é quase igual a zero, tirando personagens e estilos. Coloca-se naturalmente a pergunta: como pode então uma mera mudança de figurantes resultar numa mudança de rumo?
Não pode. As bases em que assentam os respectivos planos de governo são as mesmas:
– proteger o patronato com leis laborais mais relaxadas, sob o dogma de que são as empresas que “dão” trabalho e “criam” riqueza;
– aliviar a carga fiscal sobre o capital, dentro da ideia sempre desmentida (além de moralmente repugnante) de que quanto mais ricos forem os de cima mais poderá sobrar (sobrar!) para os de baixo;
– prometer crescimento económico com apelos lancinantes ao aumento da produtividade do trabalho, na verdade apenas assentes num incremento do grau de exploração absoluta do trabalho assalariado;
– atender pelo mínimo às necessidades sociais, sempre depois de satisfeitas as necessidades privadas, sempre na condição de não sacrificar o mundo dos negócios;
– nutrir respeito religioso (além de constitucional) pela propriedade privada, preceito que faz com que 90% dos cidadãos não tenha nada de seu, a não ser força para trabalhar.
Se este rol, ou outro equiparado, de valores indisputados – pelos quais se pauta o sistema social e que preside, na sombra, à campanha eleitoral – fosse verdadeiramente posto à luz do dia e escalpelizado, poderia esperar-se uma campanha esclarecedora sobre o que defendem e quem representam cada uma das forças em presença, nomeadamente as que estão em condições de formar governo. Sem isso, o nevoeiro das promessas faz livremente o seu curso.
Estabilidade, acima de tudo estabilidade
Tudo leva a crer que nenhuma das grandes forças partidárias venha a ter vantagem significativa sobre a outra. Ou seja, tudo pode ficar na mesma como há um ano atrás. Essa é a raiz da inquietação do patronato que o levou a bramar contra a “irresponsabilidade” parlamentar de deitar fora um governo, novo em folha, que se ia aguentando – e a atribuir “aos portugueses” o fartote com mais umas eleições.
A ideia, que parecia enterrada, de um Bloco Central (ao menos, tácito) que assegure uma governação durável faz caminho neste mar de incerteza. Invoca-se até o recente exemplo alemão. Mas a solução tem riscos grandes, para mais diante de uma situação internacional periclitante. No caso, por exemplo, de um descalabro económico, de crescimento do desemprego, de volta da inflação, de rotura das cadeias de abastecimento – com ambos os grandes partidos politicamente queimados, associados na mesma solução governativa – que alternativa de recurso poderá o capital apresentar depois aos eleitores?
Por esta dúvida pairar nos espíritos do poder, há quem – por enquanto à boca pequena – aponte a necessidade de fazer da extrema-direita um parceiro natural da direita e da governação, mantendo o outro dos dois grandes como roda sobressalente. Exemplos não faltam por essa Europa fora.
Este quadro mostra como se degradou o regime da democracia novembrista. As soluções governativas arranjadas “ao centro” durante 50 anos (apenas uma vez com acordo de governo formal nos idos de 1983, nas restantes vezes com acordo tácito) já não funcionam da mesma maneira. O sistema abre brechas, significando que os de cima já não conseguem governar como dantes. No entanto, os de baixo ainda não manifestam clara disposição para rejeitar viver como dantes. E é neste desfasamento que a extrema-direita ganha terreno.
O Efeito Isaltino
As moscambilhas do primeiro-ministro são pedra de fisga nas disputas partidárias. Mas, antecipadamente, não se sabe ao certo que papel vão ter nas escolhas dos eleitores. A cascata de denúncias não deixa margem para dúvidas sobre o estofo de Montenegro, que não só acha legítimos os negócios em que se meteu, da forma em que neles se meteu, como até considera isso um palmarés: um político que não precisa da política para se governar.
Os apaniguados vão mais longe. Valorizam a experiência profissional do homem que, fora do Governo, “paga salários”, como sublinhou o destituído líder da bancada social-democrata – mostrando que, no seu quadro mental, não cabe essa aberração que seria qualquer serralheiro, pedreiro ou empregada de limpeza, que não pagam salários, chegarem a primeiro-ministro ou a deputado… Num programa de rádio, um pequeno empresário manifestava solidariedade, talvez imaginando-se no lugar de Montenegro: “Então o homem não pode ter nada de seu?”
As suspeitas que recaem sobre Montenegro podem, portanto, não o queimar. Atente-se neste caso. Isaltino Morais, actual e anterior presidente da Câmara Municipal de Oeiras, foi condenado por corrupção e passou um anito na cadeia entre 2013 e 2014. Mesmo quando estava preso, apadrinhou uma lista de candidatos à Câmara, de sua confiança, que ganhou as eleições em 2013. Cumprida a pena, voltou a candidatar-se, desta vez em pessoa, e voltou a ganhar a mesma Câmara (em 2017 e 2021). Ora, se um cadastrado, condenado por abuso de poder no exercício de cargo público, pode voltar a exercer cargos públicos, que razão absurda haverá para impedir a reeleição de um primeiro-ministro que nem sequer foi julgado e condenado?
Pode chamar-se a isto o Efeito Isaltino, que se enuncia assim: nós, eleitores, sabemos que tu és ou podes ser corrupto; mas, se fizeres “obra”, nós não temos nada contra arredondares o ordenado de combinata com empreiteiros e empresários.
É com esta mentalidade que Montenegro e o PSD contam ao lançarem ao eleitor o slogan “Deixa o Luís trabalhar”. A aposta é de risco, mas, se acertar, estará dada a prova de que o sistema eleitoral, as instituições, a democracia vigente, a moral dominante, o nível de despolitização dos eleitores – desceram mais um degrau em direcção ao pântano. E, neste caso, “acertar” tanto pode ser ganhar o sufrágio como perder por pouco.
Tabus da esquerda
A esquerda com representação parlamentar faz a campanha que sempre fez: propor medidas de remendo num tecido que precisa de substituição. Não salta fora do redil. Joga o jogo com as regras e os limites impostos pelo regime. Teme que tratar os assuntos pela raiz (radicalmente) afaste o eleitorado sisudo e amigo da ordem.
Esquece que esta ordem só serve alguns e que há uma massa enorme de gente descontente e despojada que tem os ouvidos disponíveis para uma outra política; e que por não ver essa política se abstém ou vota sem convicção; ou vota na figura que lhe parece menos má no momento – tornando-se presa da demagogia da extrema-direita que ousa bramar contra “o sistema”. O que dá sinal de que parte do território social da esquerda – pelo menos o da massa popular mais pobre e despolitizada – está a ser desbravado pela extrema-direita.
Não será difícil aceitar que, de momento, há três campos em que medidas radicais precisariam de ser contrapostas ao rame-rame instituído – Habitação, Saúde e Guerra/Despesas militares – de modo a pôr em xeque os representantes do regime, extrema-direita incluída.
Habitação. Não basta pedir construção de mais casas para alargar “o mercado” enquanto “o mercado” estiver dominado pelas forças da especulação. Não basta propor tectos às rendas enquanto os grandes senhorios dominarem o negócio do arrendamento. Não é justo dar destaque de primeira página às dificuldades “da classe média” enquanto houver milhões de proletários (nacionais e imigrados) sem casa, ou a viver em partes de casa e em barracas.
A raiz do problema está no antagonismo entre os direitos conferidos ao capital fundiário-financeiro (que assentou arraiais na especulação imobiliária) e o direito básico dos trabalhadores à habitação. A contradição resolve-se declarando a primazia deste sobre aqueles, incluindo o direito do Estado a expropriar o capital fundiário para solucionar o problema. Boa parte da questão foi respondida, logo após o 25 de Abril, com as ocupações de casas devolutas, pondo senhorios e especuladores na defensiva e obrigando os governos provisórios a promover, de emergência, políticas estatais de construção popular.
Saúde. Não basta pedir mais verbas para o Serviço Nacional de Saúde ou inventar reorganizações e poupanças nos serviços enquanto o capital privado (de novo, grandes grupos financeiros) tiver a capacidade de concorrer à vontade com o serviço público aliciando profissionais ou tomando conta da gestão de hospitais e centros de saúde do Estado. A chamada “concorrência entre o público e o privado” serve de cobertura para que o capital privado, muito mais poderoso que o Estado, elimine o sector público da Saúde que lhe faz sombra e chame a si tudo o que daí seja rendoso.
Só medidas de socialização da saúde pública respondem à situação. Nesse âmbito, teria sentido impor a obrigação de todos os profissionais de saúde, uma vez formados, prestarem serviço público ao menos durante parte da sua carreira profissional. Do mesmo modo, faria sentido impor limites à actividade privada no sector da saúde em nome do interesse colectivo.
Guerra. Os apelos à paz não bastam para parar as guerras na Ucrânia e na Palestina, ou para travar as ameaças que o Ocidente continua a destilar. Uma esquerda apostada em desarticular os riscos de guerra tem de começar por ver a matriz comum dos conflitos em curso: os EUA e a UE, de um modo ou outro, com nuances ou sem elas, estão envolvidos de corpo inteiro como promotores de todos eles. A sua natureza imperialista, a necessidade de exercer poder sobre outros povos e países é que lhes dita a política de agressão sistemática.
Neste sentido, é uma contradição insanável, que chega ao ridículo, defender o “reforço” da UE – no plano político ou militar – e ao mesmo tempo pretender que ela siga numa senda de paz, de harmonia entre os povos e de respeito pelos direitos materiais e sociais dos trabalhadores. Os planos de rearmamento europeu “trazem no ventre despojos antigos”, como diz a canção.
O centro da questão está no facto de Portugal (por vontade das suas classes dominantes) ser prisioneiro da teia imperialista urdida pelos EUA e mantida pela UE, que tem como sustentáculo a NATO. Romper essa teia é o princípio de uma política contra a guerra. A questão que se coloca à esquerda é trabalhar para a derrota do campo em que o país está envolvido – pela denúncia, pelas manifestações, pelo esclarecimento sobre as origens dos conflitos, pelo combate aos planos de guerra, a começar pelo rearmamento e o aumento das despesas militares. Não pode sobrar para a NATO e faltar para o pão.
Amarradas, por um apego supersticioso, às instituições de um sistema caduco, que teimam em remendar sem êxito, as forças da esquerda institucional limitam-se a uma postura defensiva, cautelosa, táctica, acerca dos grandes problemas que atingem os trabalhadores e os mais pobres. É isso que as incapacita para apresentar caminhos próprios – caminhos esses que, obrigatoriamente, terão de afrontar o sistema político e social como um todo.