Uma visão russa da viragem operada nos EUA
Editor / Dmitry Trenin — 27 Março 2025

O texto que reproduzimos, originalmente publicado na revista russa Profil e em Russia Today, tem o interesse de mostrar o pensamento que norteia a elite dirigente da Rússia em face da viragem operada pelo governo Trump. Um compreensível tom de optimismo sobressai dos argumentos de Dmitry Trenin: a vitória militar, a resistência económica, a unidade política interna da Federação Russa e o alargamento dos seus apoios externos estão de facto na base da mudança operada nos EUA. Mas não há propriamente triunfalismo nas palavras de Trenin, por boas razões.
Se a “era das cruzadas liberais” é dada por terminada, como acredita o autor, em seu lugar instala-se uma aguçada luta de potências que irá marcar o futuro próximo. Com a particularidade inédita de o Ocidente se encontrar atravessado por divisões insanáveis, a UE não mostrar força para se equiparar aos concorrentes e as novas alianças (como os BRICS ou a Organização de Xangai) darem alento às aspirações de independência do mundo periférico.
Desta luta não se sabe ainda o desenlace, mas sabe-se que uma profunda mudança se opera.
Como a maioria dos analistas ocidentais, o autor do artigo não se interroga sobre o papel das lutas de classes e das aspirações dos povos na nova ordem que se desenha. Trata tudo como se a história dependesse por inteiro dos confrontos entre os poderes políticos instalados e dos respectivos interesses. Nisso, a burguesia russa não se distingue da burguesia ocidental. De facto, as lutas de classes parecem postas de lado, abafadas por baixo dos confrontos maiores entre potências e dos seus jogos estratégicos. Mas, mesmo em estado larvar e com fraca projecção política, elas persistem. O que importa saber é se as brechas abertas na velha ordem criam condições para uma nova corrente de lutas em que as massas populares e trabalhadoras – sejam do mundo periférico, sejam do mundo capitalista desenvolvido – digam de sua justiça, não pela voz das classes dirigentes actuais mas por voz própria.
O LIBERALISMO MORREU, EIS O QUE VEM DEPOIS
No mundo de Trump, as grandes potências não pregam – competem
Dmitry Trenin, Russia Today, 26 março 2025
A expressão “mudar a ordem mundial” tornou-se um refrão familiar nos assuntos internacionais. Mas o que muitas vezes se perde é a rapidez com que essa mudança está a desenrolar-se agora – e quem a está a acelerar.
As mudanças de regime nas relações internacionais são geralmente o resultado de crises: guerras entre grandes potências ou convulsões dentro delas. Foi assim em 1939-1945 e novamente em 1989-1991. Normalmente, os problemas acumulam-se ao longo de anos e décadas, e a resolução surge inesperadamente: o movimento lento das placas tectónicas de repente acelera dramaticamente, começa uma avalanche que muda rapidamente a paisagem. Tivemos a oportunidade de observar algo semelhante nas últimas semanas. O mais impressionante é que o principal factor das mudanças tem sido a liderança do Estado que até agora tem defendido, da forma mais teimosa e até feroz, os restos da velha ordem mundial
A queda da unipolaridade, há muito prevista e cautelosamente esperada, chegou antes do previsto. Os Estados Unidos, durante muito tempo o promotor do internacionalismo liberal, já não estão a tentar travar a mudança para um mundo multipolar. Sob Donald Trump, os EUA juntaram-se a ela.
Esta viragem não é uma mera promessa de campanha ou mudança retórica. É uma ruptura estrutural. No espaço de semanas, os EUA deixaram de resistir à ordem multipolar para tentarem dominá-la em novos termos – menos moralismo, mais realismo. Ao fazê-lo, Washington pode, inadvertidamente, ajudar a obter o resultado que as administrações anteriores trabalharam arduamente para evitar.
A viragem de Trump tem implicações amplas e duradouras. O actor mais poderoso do mundo abandonou a tutela do globalismo liberal e abraçou algo muito mais pragmático: a rivalidade entre grandes potências. A linguagem da promoção dos direitos humanos e da democracia foi substituída por “America First”, não apenas internamente, mas também nas relações externas.
O novo presidente dos EUA arquivou as bandeiras arco-íris do BLM [Black Lives Matter] e a sopa de letras do liberalismo ocidental. Em vez disso, agita a bandeira americana com confiança, sinalizando para aliados e adversários: a política externa dos EUA agora é sobre interesses, não ideologias.
Isto não é teórico. É um terramoto geopolítico.
Em primeiro lugar, a multipolaridade deixou de ser hipotética. Trump mudou os EUA de um executor da unipolaridade para um actor na multipolaridade. A sua doutrina – “competição de grandes potências” – alinha-se mais com a tradição realista do que com o liberalismo pós-Guerra Fria que dominou Washington durante décadas.
Nesta perspectiva, o mundo é constituído por polos soberanos: os EUA, a China, a Rússia, a Índia – cada um perseguindo os seus próprios interesses, por vezes em conflito, por vezes sobrepostos. A cooperação não resulta de valores partilhados, mas de necessidades partilhadas. Este é um mundo que a Rússia conhece bem – e no qual prospera.
Em segundo lugar, a viragem de Washington para o realismo significa uma mudança fundamental na forma como se relaciona com o mundo. A era das cruzadas liberais acabou. Trump retirou o financiamento à USAID, cortou orçamentos de “promoção da democracia” e mostrou vontade de trabalhar com regimes de todos os tipos – desde que sirvam os interesses americanos.
Trata-se de um afastamento dos quadros morais binários do passado. E, ironicamente, alinha-se mais com a própria visão de mundo de Moscovo. Sob Trump, a Casa Branca já não procura exportar o liberalismo, mas negociar o poder.
Em terceiro lugar, o Ocidente, tal como o conhecíamos, desapareceu. O “Ocidente colectivo” liberal – definido por uma ideologia comum e pela solidariedade transatlântica – já não existe na sua forma anterior. Os EUA efectivamente retiraram-se dele, dando prioridade ao interesse nacional sobre os compromissos globalistas.
O que resta é um Ocidente fracturado, dividido entre governos liderados por nacionalistas, como o de Trump, e redutos liberais mais tradicionais em Bruxelas, Paris e Berlim. O choque interno entre estas duas visões – nacionalismo versus globalismo – é agora a luta política definidora em todo o Ocidente.
Esta luta está longe de terminar. O domínio de Trump pode parecer garantido, mas a resistência interna continua potente. Se os republicanos perderem as eleições intermédias de 2026, a capacidade de prosseguir com sua agenda pode ser prejudicada. Trump também está constitucionalmente impedido de concorrer novamente em 2028, o que significa que o tempo é curto.
À medida que o Ocidente se fractura, a “Maioria Mundial” – uma coligação informal de nações fora do bloco ocidental – torna-se mais forte. Originalmente cunhado para descrever estados que se recusaram a sancionar a Rússia ou a armar a Ucrânia, agora representa um realinhamento mais amplo.
A Maioria Mundial não é uma aliança formal, mas uma postura compartilhada: soberania sobre submissão, comércio sobre ideologia, multipolaridade sobre hegemonia. Os BRICS, a OCS [Organização da Conferência de Xangai] e outros formatos regionais estão a amadurecer como alternativas genuínas às instituições lideradas pelo Ocidente. O Sul global já não é uma periferia – é um palco.
Estamos a assistir à consolidação de um novo “Três Grandes”: os EUA, a China e a Rússia. É provável que a Índia se junte a eles. Não se trata de aliados ideológicos, mas de potências civilizacionais, cada uma perseguindo o seu próprio destino.
As suas relações são transacionais, não sentimentais. A China, por exemplo, conseguiu andar na corda bamba durante a operação militar da Rússia na Ucrânia, mantendo uma parceria estratégica com Moscovo e salvaguardando o acesso aos mercados ocidentais.
Isso não é traição, é boa diplomacia. No mundo multipolar, cada jogador observa o seu próprio flanco. A Rússia respeita isso. E, cada vez mais, age da mesma forma.
O lugar de Moscovo no novo mundo é outra questão. A Rússia emergiu dos últimos dois anos mais autossuficiente, mais assertiva e mais central para o sistema internacional. A guerra na Ucrânia – e a resistência da economia, da sociedade e das forças armadas da Rússia – mudou as percepções globais.
A Rússia já não é tratada como um parceiro júnior ou uma potência regional. Está agora envolvida em pé de igualdade com Washington, Pequim e Nova Deli. Essa mudança é visível não apenas na diplomacia, mas na logística global: novos corredores comerciais eurasiáticos, cooperação ampliada dos BRICS e uso crescente de moedas nacionais no comércio.
Tendo confirmado o seu estatuto como uma das principais potências mundiais em resultado do conflito na Ucrânia, a Rússia está em posição de ocupar o lugar que lhe cabe neste mundo. Não devemos cair em ilusões e relaxar. A viragem da América para o realismo é o resultado do sucesso do exército russo, da resistência da economia russa e da unidade do povo russo.
O que importa agora é aproveitar esta dinâmica. Os EUA podem ter virado para o realismo, mas continuam a ser um concorrente. A Rússia deve continuar a reforçar a sua soberania tecnológica, a aprofundar os laços com a Ásia e a prosseguir uma política externa ancorada no pragmatismo e não na nostalgia.
A Rússia deve continuar a observar as batalhas internas no Ocidente – especialmente o ciclo presidencial dos EUA e as tensões dentro da UE. Mas não deve fazer depender as suas políticas da aceitação ou aprovação ocidental. Tanto mais que as relações de Moscovo com os países da Europa Ocidental estão a tornar-se cada vez mais tensas no contexto do seu diálogo com Washington.
A unidade ocidental é cada vez mais condicional, transacional e repleta de contradições. França, Alemanha e Itália podem enfrentar turbulências políticas. A integração pode vacilar. O envolvimento da Rússia deve ser táctico – olhos abertos, cartas perto do peito.
Não vale a pena esperar que o novo mundo seja proclamado – ele já está aqui. Fomos além da teoria. Agora começa a disputa por uma posição. O mundo tornou-se multipolar não porque alguém quisesse, mas porque o próprio poder mudou. Trump não causou isso sozinho. Mas acelerou – talvez involuntariamente – o processo.
O trabalho da Rússia agora não é provar que a velha ordem está errada, mas garantir que reivindica o seu lugar na nova ordem.
——
Dmitry Trenin. Professor investigador na Escola Superior de Economia e investigador principal no Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais. Membro do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia.
Comentários dos leitores
•leonel l. clérigo 29/3/2025, 13:20
Se este texto de Dmitry Trenin fosse escrito ao tempo da longa Aliança Braganças/Igreja, era caso para fogueira no Terreiro de Paço. Mas o "estrago" que ameaça fazer no meio dos COMENTADORES/AS ENCARTADOS/AS das TVS que ainda usam os óculos do IMPÉRIO, não é caso para menos.
1 - Quando os IMPÉRIOS amortecem sua função "pacificadora" e "extractiva" - TRENIN prefere falar hoje e docemente de "era das cruzadas liberais" - mais do que nunca o FUTURO torna-se incerto. Sobretudo quando um "longo" período - entre nós - de 50 anos de lengalenga vem "aguando" persistentemente as cabeças, obrigando agora a "piruetas" à maneira de Vitor Ramalho e Sousa Pinto.
Mas é nos períodos de reorganização dos "PODERES MAIORES" - como se costuma dizer, "enquanto o pau vai e vem, folgam as costas" - que se amortecem os laços de DOMINAÇÃO desses GRANDES PODERES e há um período de FOLGA para as NAÇÕES FRACAS e DEPENDENTES "Lutarem pela sua "vida" e "escolherem caminhos novos". Um bom exemplo disso foi a AMÉRICA LATINA ao tempo do início da CEPAL "chefiada" pelo argentino Raúl Prebisch.
2 - Deixemo-nos de tretas e aceitemos de vez que PORTUGAL continua a ser um PAÍS SUBDESENVOLVIDO e, como tal, sem FUTURO para as suas GENTES. Só assim, aceitando o desafio, nos será possível impulsionar as necessárias TRANSFORMAÇÕES INTERNAS que, "congeladas", vêm perpetuando a inércia da DEPENDÊNCIA sem FUTURO.
Mas para isso, há que repensar - da alto abaixo - as NOSSAS organizações POLÍTICAS e o MAL que têm vindo a causar ao PAÍS: precisamos de ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS NOVAS que ponham no 1º LUGAR o BEM-ESTAR da POPULAÇÃO PORTUGUESA e não só a de MEIA-DÚZIA de PEQUENO-BURGUESES endinheirados a que pomposamente chamam de CLASSE MÉDIA.
3 - É preciso revisitar a REVOLUÇÃO dos CRAVOS mas não "O CRAVO ao PEITO" que desce a "Av. da LIBERDADE" em festa. Isso é folclore barato.
É PRECISO com urgência OLHAR o D de DESENVOLVIMENTO que há 50 anos se encontra DEBAIXO do TAPETE.
NOTA:
Deu-me a curiosidade - depois de ver e ouvir a brilhante conversa entre V. RAMALHO e SOUSA PINTO - e voltei a reler uma "velha" e curiosa brochura do PS com o nome "POLÍTICA ECONÓMICA de TRANSIÇÃO". E o MUNDO parecia que se REJUVENESCIA: por onde anda essa gente escriba?
Desconheço quem fez tal texto e também quem o colocou "debaixo do tapete". Mas sobre esse seu destino, não me custa imaginar ter tido ele origem na "EUROPA CONNOSCO": os "dinheiros" que deu mais a AutoEuropa, foram suficientes para comprar a "Democracia" que nos prendeu pelo pescoço.
Curiosamente, volta-se a falar hoje de INDUSTRIALIZAÇÃO/DESINDUSTRIALIZAÇÃO, de coisas REAIS e não, como dizia José Mário Branco, de "Paleio de Pop-Chula". E se é verdade que as "DIFICULDADES" aguçam o "ENGENHO", talvez não fosse de todo má ideia, os FAZEDORES do PROGRAMA do NOVO GOVERNO do PS, voltarem a reler a brochura - se ela ainda está na biblioteca. Talvez até aprendessem alguma coisa para os novos tempos que correm. Como dizia o outro: APROVEITEM AGORA que o IMPÉRIO ESTÁ DISTRAÍDO e de COSTAS.
•leonel l. clérigo 31/3/2025, 12:47
ZANGAM-SE AS COMADRES...
1 - A Indústria AUTOMÓVEL USA - assim como algumas outras - está há muito moribunda: as "velhas banheiras" não se atualizaram e perderam preponderância no mercado Mundial.
Para a dinamizar, o Presidente TRUMP fez o que é certo com a sua "America First": aplicou TARIFAS, um velho mas eficiente expediente para proteger qualquer INDUSTRIA NACIONAL que se quer que retome seu dinamismo.
Mas se isso lhe fica bem e é até de louvar numa "AMERICA FIRST" que quer continuar a ser o INDUSTRIALIZADO nº 1, já não é nada bonito para a "CABEÇA" do IMPÉRIO: fechar o "SANTO MERCADO" à velha clientela, naturalmente, que ficará ela incomodada.
2 - Parece ser esse o caso do JAPÃO: incomodado com as "tarifas" aos seus automóveis ameaça agora "lançar no MERCADO MUNDIAL" cerca de 1 trilhão e 100 bilhões de "títulos do Tesouro USA" - nem imagino o volume de notas de Dollar que isto é - que estão nas suas mãos, tal como outras somas astronómicas estão nas mãos de outros Estados-Nação. E se esses "títulos" forem postos "à rédea solta" no Mercado Mundial, vai ser o "bom e o bonito". E isto apesar do Presidente Trump ter nas mãos uma boa alternativa: transformar a Wall Street num "RESORT"... tal como quer fazer um em Gaza.