EUA, UE: a guerra como sobrevida

Manuel Raposo — 8 Fevereiro 2025

Mentalidade de guerra, gastos militares acrescidos, perda de condições de vida. É esse o programa

O mesmo indivíduo que um dia acusou os portugueses de esbanjarem os subsídios da União Europeia “em mulheres e vinho”, veio há pouco exigir que os gastos militares do país (como de todos os membros da NATO) passem de 2% para 5% do PIB. Disse mesmo, sem qualquer rebuço, com a soberba de um colonizador, que esse acréscimo de despesa deveria ser conseguido à custa das pensões, da saúde pública e da educação. O personagem, Mark Rutte, era então primeiro-ministro da Holanda e é agora secretário-geral da NATO. 

O primeiro-ministro português recebeu-o em Lisboa com toda a solicitude, tratando-o por “meu amigo”, e aceitando sem restrições a imposição desse cobrador de impostos, cujo propósito não é outro senão alimentar a cruzada anti-russa e anti-chinesa lançada pelos EUA e acolhida pela UE.

“Mentalidade de guerra”, quer a NATO

Na tentativa de vencer naturais resistências – não dos dirigentes, mas da população europeia, já farta de guerra – Rutte procurou justificar a extorsão com a ideia de que a Europa corre um grave perigo contra o qual tem de se preparar: a “ameaça russa”, recuperando o arsenal ideológico e propagandístico da Guerra Fria. Para fazer frente a essa “ameaça”, diz Rutte, é preciso adoptar uma “mentalidade de guerra”, ou seja, incutir nas populações europeias a convicção de que a Rússia é um inimigo e convencê-las a abdicar de direitos sociais para alimentar a máquina de guerra do imperialismo norte-americano e do seu aliado europeu.

A conversa da NATO, que os dirigentes portugueses e a sua corte de propagandistas acolhe e reproduz de forma canina, é o espelho daquilo que o imperialismo de hoje, no seu estado de podridão, tem para oferecer aos povos – agora não apenas aos povos do chamado mundo periférico, mas também do próprio mundo desenvolvido. Adeus progresso, melhoria de vida, ascensão social, paz, etc. etc. Esse discurso acabou. De agora em diante, mentalidade de guerra, gastos militares acrescidos, perda de condições de vida. Eis o programa.

“Reindustrialização” ou simplesmente o negócio das armas?

Alguém disse que o capitalismo, diante de um problema, não o resolve – inventa um negócio. O problema é a senilidade do capitalismo ocidental, concretamente, o bloqueio do processo de acumulação de capital. O negócio é a corrida às armas.

Desde meados da década de 1970, o capitalismo ocidental entrou numa longa estagnação que se arrasta até hoje e da qual não encontra via de saída. No decurso deste meio século, as suas taxas de crescimento diminuíram de forma consistente. Sendo o capitalismo um sistema de crescimento contínuo, a estagnação significa decadência, senilidade e morte. Esta é a razão de fundo do declínio do imperialismo norte-americano. Os parceiros dele dependentes, e que com ele partilham as mesmas características de um capitalismo envelhecido, como é o caso da Europa, sofrem do mesmo mal e são por isso arrastados na queda.

O negócio da indústria armamentista é apresentado como a solução miraculosa (na verdade, de último recurso) para a “reindustrialização” da Europa, e é tido inclusive como o caminho para uma renovação do seu esplendor económico, da sua “autonomia” (face à prepotência desabrida dos EUA) e do seu “papel no mundo” (como potência imperialista, obviamente). 

Frutos destas circunstâncias desesperadas, o Relatório Draghi para a “salvação” da Europa, a arrogância belicista de Mark Rutte e a ignorância servil de Luís Montenegro convergem no mesmo propósito: fazer da “mentalidade de guerra” um negócio, alimentando um sector bem determinado do capital, à custa do que resta do Estado Social europeu.

Nenhum deles se preocupa com as consequências sociais, imediatas e a prazo, que esta inflexão na política económica da Europa, e do país, vai provocar.

O desperdício como programa económico

O investimento na indústria de armamento, tal como, por exemplo, na indústria dos produtos de luxo, é um investimento socialmente improdutivo. 

Um investimento produtivo caracteriza-se por contribuir para ampliar a riqueza social. A mais-valia que dele resulta pode ser reinvestida e reproduzida, permitindo a acumulação alargada de capital – diversificando a produção de bens e o seu consumo, aumentando (ao menos, potencialmente) o emprego, melhorando (ao menos, potencialmente) as condições de vida, etc. Deste tipo de investimento resulta, pois, uma reprodução alargada do capital social.

Assim não acontece com os investimentos improdutivos. Como é evidente com a indústria de luxo, toda a produção de bens deste tipo se destina, não à sociedade por inteiro, mas essencialmente às classes dominantes ou mesmo a uma parcela destas. O efeito social, por assim dizer, dos bens resultantes desta produção restringe-se à satisfação dos interesses particulares de uma fracção de uma dada classe social. 

Do valor que esse sector industrial produz, só uma parcela resulta em benefício social (nomeadamente, através dos salários pagos aos respectivos trabalhadores); tudo o mais destina-se a um consumo privado restrito sem contribuir para as condições de existência da sociedade como um todo. Do ponto de vista da sociedade por inteiro, constitui um custo improdutivo, ou mesmo um desperdício. Deste tipo de investimento não resulta uma reprodução alargada do capital social.

A indústria armamentista destinada à guerra, é disso que se trata, tem estas características: dirige-se a um consumo determinado (seguindo mesmo planos de desperdício e de obsolescência programados), que se concretiza no exercício da violência por parte das classes dominantes, não só nas suas disputas, mas, sobretudo, na conquista ou defesa de privilégios contra países e povos recalcitrantes.

O tipo de consumo que lhe é próprio – patente sobretudo no encaminhamento final dos bens, destinados a serem eliminados, destruindo eles próprios outro capital social – constitui um travão ao crescimento económico, no sentido em que esse consumo não resulta na criação dos elementos necessários à reprodução alargada do capital social.  

A sociedade paga

Estas indústrias socialmente improdutivas, como se depreende, não deixam de gerar lucro aos capitalistas que nelas investem; não deixam de dar emprego e salário aos trabalhadores que exploram; não deixam de contribuir para o consumo de outros bens através dos salários dos seus trabalhadores. Nesse sentido estrito, são produtoras de mais-valia e, portanto, de lucro para os respectivos capitais. 

No caso concreto da indústria bélica, há a garantia da parte do Estado de que os produtos têm escoamento seguro e sucessivo. O Estado desempenha neste processo um papel determinante ao adquirir a produção armamentista por meio dos impostos que cobra. Com isso, dissipa, em pura perda, riqueza social, usurpa valor aos salários, directos e indirectos, da massa trabalhadora.

Os investimentos na indústria militar podem assim contar sempre com ganhos de pouco risco e normalmente gigantescos. É este o ponto que desafia a gula dos investidores capitalistas, a braços com dificuldades de valorização em outros sectores de actividade, e gera o aplauso de dirigentes políticos do poder.

Mas, insistimos, na medida em que os produtos em causa não se destinam ao consumo da generalidade da população, ou sequer de uma parte significativa dela; na medida em que o valor que produzem é delapidado – não podem contribuir para uma melhoria geral (mesmo potencial) das condições de vida da colectividade. E, pelo contrário, na medida em que tendem a retirar recursos de capital da esfera produtiva (bens de consumo diário, habitação), assim como recursos de serviços sociais (saúde, pensões, educação), ou ainda recursos destinados a equipamentos e infraestruturas (transportes, vias, redes de saneamento ou energia) – contribuem para empobrecer o capital social. Constituem custos improdutivos pagos pela sociedade. 

“Custos que para a sociedade pertencem aos faux frais da produção [falsos custos, custos de produção suplementares], podem ser uma fonte de enriquecimento para o capitalista individual” (Karl Marx, O Capital).

Um curso para o desastre

As esperanças depositadas nos benefícios da indústria armamentista – nomeadamente no relançamento da economia europeia – não só são ilusórias, como procuram mascarar a degradação económica e social a que o mundo imperialista não consegue pôr travão no seu próprio território. O desperdício e a actividade improdutiva ganham um peso cada vez maior no sistema capitalista em geral, particularmente visível no mundo ocidental.

Este caminho de desperdício de trabalho social e de parasitismo acentua-se com o envelhecimento e a inoperância do sistema capitalista, contribuindo para agravar, não para melhorar, as condições gerais de existência das sociedades de hoje. Designadamente, o crescimento contínuo das despesas militares, surge não apenas como derivativo a um sistema de produção avariado, mas também como necessidade extrema de defesa das classes dominantes – para se apropriarem de recursos e para se manterem no poder.

Draghi, Rutte ou Montenegro, cada um na sua escala e no seu papel, são agentes deste curso para o desastre disfarçado de “programa de salvação” da Europa. Os povos europeus têm toda a legitimidade e a obrigação de se levantar contra o itinerário de catástrofe desenhado em Washington e em Bruxelas, traduzido na “mentalidade de guerra” que a NATO quer impor. Esse caminho atiça o clima de confronto militar, liquida direitos sociais e liberdades, e origina uma ainda maior degradação económica pela mobilização maciça de recursos para a esfera armamentista. 

Bem pode Montenegro, para sossegar os espíritos, jurar que as contribuições colossais para a NATO não porão em causa os direitos sociais dos portugueses… Contra ele falam as palavras brutais de Rutte. A lógica inscrita nos planos de rearmamento da Europa, para mais num ambiente de estagnação do capitalismo ocidental, apontam directamente para um aumento da exploração do trabalho e para a degradação das condições de vida dos trabalhadores, pois essa é a fonte onde o capital vai buscar recursos para as suas aventuras.

 


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 8/2/2025, 18:21

A submissão dos «nossos» dirigentes ao grande capital e ao imperialismo anglo-americano está mais patetne do que nunca, é um espetáculo obsceno e triste.


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