As voltas da Pax Americana

Editor / Kirill Strelnikov — 31 Dezembro 2024

Fuga do país e quebra da natalidade: desde 2022, a população da Ucrânia diminuiu em mais de 10 milhões de pessoas, um quarto do total

A conversa sobre a necessidade de cessar fogo na Ucrânia que os meios ocidentais promovem desde a eleição de Trump tem a ver com uma realidade muito concreta que se impõe mesmo aos olhos dos mais fanáticos belicistas: a guerra está perdida para o Ocidente no plano militar. A isto soma-se o facto de a Rússia não ter sido derrotada pelas sanções económicas e não ter ficado politicamente isolada, longe disso, do resto do mundo. Os planos do imperialismo norte-americano e dos seus serviçais europeus – que apostavam no desgaste militar, no colapso económico e na ostracização política da Rússia – saíram, portanto, furados.

A questão que agora se coloca ao Ocidente é como sair do atoleiro em que se meteu. Em tese, há duas saídas possíveis: ou levar as hostilidades a um patamar superior, para além do território da Ucrânia e da guerra convencional, implicando isto sérios riscos de confronto nuclear; ou recuar, atribuindo a derrota militar a Zelensky e aos ucranianos e procurando salvar o que for possível dos interesses imperialistas no território que resta da Ucrânia. 

Esta parece ser a base da divergência que opõe o bando de Biden ao bando de Trump – facto que está na origem dos sérios abalos que abrem brechas na tão cantada unidade de ferro da UE e da própria NATO.

A análise de Kirill Strelnikov publicada pela agência russa RIA Novosti (que a censura imposta pelo liberal Ocidente nos impede de conhecer, a não ser por portas travessas) denuncia os negócios que estão em preparação pelas grandes empresas multinacionais na perspectiva, que agora acalentam, de um cessar das hostilidades. Esta é uma das forças de pressão que, segundo o autor, actua sobre Trump e o leva a aparecer como mensageiro de paz para a Ucrânia – quando, acrescentamos nós, o mesmo Trump se manifesta como o exacto contrário no que respeita à Palestina e ao Médio Oriente, a outra das duas guerras do momento urdidas a partir do mesmo foco infeccioso: Washington.

 

O NEGÓCIO DO SÉCULO: TRUMP VAI REPARTIR A UCRÂNIA DE MODO A DAR PARA TODOS

Kirill Strelnikov (RIA Novosti, via Histoire et Société)

Ontem [25 de dezembro], o presidente cessante dos EUA, Joe Biden, assinou um orçamento de defesa recorde dos EUA, que ascenderá a 895 mil milhões de dólares para 2025, mais 1% que no ano passado. Antes, este orçamento do Pentágono tinha sido aprovado pelo Senado e pelo Congresso praticamente sem alterações ou contestações, o que significa que o dinheiro da guerra está no coração tanto dos Democratas como dos Republicanos.

A tendência é clara: os Estados Unidos não vão abandonar a sua política de resolução de problemas através da força militar – pelo contrário, têm gosto nisso. Poderíamos falar de “imperialismo beligerante”, do “poderoso lobby do complexo militar-industrial” e assim por diante, mas a questão é muito mais profunda do que isso.

É interessante notar que a “pomba da paz” Trump não fez nenhum comentário sobre o orçamento assinado. A razão é simples: ele considera que os ganhos potenciais de milhares de milhões de dólares que as grandes empresas de defesa poderiam obter com o conflito ucraniano são apenas um osso para roer, porque pretende ganhar muito mais na Ucrânia.

Porque ele quer ganhar dinheiro não com a guerra, mas com a paz.

Depois das muitas declarações de Trump sobre os milhões de vítimas e a terrível destruição na Ucrânia, que devem acabar o mais rapidamente possível, poderia ter-se a impressão que ele teria sido mordido pela mosca de Mahatma Gandhi. Mas, na realidade, tudo o que Trump diz e faz deve ser julgado numa escala simples: a do lucro. Até a sua nova administração, onde, pela primeira vez na história americana, nada menos que 13 multimilionários foram nomeados para cargos governamentais chave, indica as verdadeiras prioridades do presidente eleito na resolução do conflito ucraniano.

Estas prioridades são simples, transparentes e claras: acabar com o conflito militar activo, que traz lucros, no momento, apenas a um punhado de empresas militares e transformar o resto da Ucrânia numa nova colónia dos Estados Unidos, que, como uma cornucópia, gerará para sempre benefícios para os norte-americanos.

Os fundamentos capitalistas normais das iniciativas de paz de Trump são revelados por um relatório interessante que circula na cozinha doméstica dos EUA. Eis algumas citações: “Sem estar limitado apenas pelas necessidades militares imediatas, o pilar central da estratégia americana é a reconstrução das infra-estruturas da Ucrânia. O custo da reconstrução, que ascende a quase 500 mil milhões de dólares, marcará a integração a longo prazo da Ucrânia nos sistemas políticos e económicos ocidentais (…) Com a inevitável estabilização da Ucrânia, as empresas americanas terão um acesso sem precedentes às oportunidades de reconstrução do pós-guerra. Só os sectores da tecnologia, da agricultura e das infra-estruturas representam um mercado avaliado em pelo menos 250 mil milhões de dólares (…) É essencial envolver as empresas americanas na recuperação da Ucrânia».

Já há centenas e centenas de empresas ocidentais (especialmente norte-americanas) que começaram a trabalhar no que resta da Ucrânia e que aguardam com entusiástica impaciência o fim das hostilidades. O seu número foi mencionado involuntariamente há algum tempo pela organização de “direitos humanos” Business & Human Rights Resource Centre (Centro de recursos de negócios e direitos humanos) no seu relatório sobre como as empresas ocidentais estão a sofrer com a “agressão russa”. Empresas como BASF, Bosch, Carlsberg, Chevron, Crédit Suisse, Eni, Ericsson, Gunvor, Hewlett-Packard, Henkel, Hitachi, LG Electronics, Maersk, Marks & Spencer, Michelin, Novartis, Novo Nordisk, Philips, Pirelli, SAP, Shell, Siemens, Twitter, Uber, Unilever, Uniper e dezenas de outras queixaram-se dos seus prejuízos.

O Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) apostou tudo na Ucrânia. De acordo com sua secção ucraniana, “imediatamente após a invasão russa, [o banco] tomou a decisão estratégica de não reduzir, mas de aumentar os seus investimentos na Ucrânia“. A lógica é tão antiga quanto o tempo: é preciso comprar activos saborosos a preços baixos quando o sangue corre às golfadas.

Ao mesmo tempo, a questão principal é a seguinte: como garantir que os investimentos já realizados não vão ser perdidos e que os próximos vão ser protegidos. Em fevereiro deste ano, Penny Pritzker, directora da estrutura americana Ukraine Reconstruction and Economic Recovery [Reconstrução e recuperação económica da Ucrânia], deu uma entrevista interessante à NPR [Rádio Pública Nacional, EUA] na qual disse estar convencida de que os investimentos norte-americanos na Ucrânia não estavam em perigo, porque “60% do território do país não é afectado pela guerra, portanto os investimentos são perfeitamente possíveis“. Desde então, porém, muita água já correu sob as pontes de “Oreshnik”, e o interesse e a integridade dos territórios que ainda não foram libertados diminuíram significativamente, o que causou ataques de tosse em grande escala nas empresas norte-americanas que disseram: “OK, amigos! Se isto continuar, vamos ficar nus. Precisamos da Ucrânia para apoiar os nossos bisnetos, é hora de parar.”

Donald Trump obviamente ouviu os seus amigos bilionários, dedilhou na calculadora, sorriu e exclamou em voz alta: “Por um mundo de paz, sim, sim, sim, sim, por uma explosão nuclear, não, não, não!“. As contas não mentem: se compararmos os ganhos dos Estados Unidos com a ajuda à Ucrânia em tempo de guerra e depois da guerra, o dinheiro da “paz” será pelo menos dez (!) vezes maior, e ainda podem receber o bónus de um Prémio Nobel da Paz.

Os europeus, que acompanham os mais ligeiros movimentos do mestre sem nunca desviar os olhos, reagiram instantaneamente à mudança de marcha: nos últimos dias, a Finlândia e a Noruega manifestaram o seu desejo ardente de aproveitar migalhas da mesa do soberano (isto é, participar na “reconstrução da Ucrânia depois da guerra”), e o chanceler alemão Scholz instou as empresas alemãs a investirem urgentemente na Ucrânia “como futuro membro da UE».

No contexto do avanço acelerado das tropas russas na Ucrânia, os apelos histéricos à paz por parte dos inimigos de ontem multiplicam-se por uma razão simples: as grandes empresas ocidentais estão muito desejosas de lucrar com a “reconstrução” da Ucrânia e, a prazo, tomar controlo eterno de toda a economia que lá resta, razão pela qual é essencial não permitir que os russos se apoderem de novos territórios (como foi o caso na Alemanha em 1945 – tudo está em vias de se repetir).

E quanto à Ucrânia e aos ucranianos? Como sempre: a ajuda ocidental nunca foi e nunca será gratuita. O que resta da Ucrânia pagará pela sua russofobia não só em vidas humanas e territórios, mas também perdendo a sua independência e o seu futuro.

«Então, meu filho, os teus Liakhs [polacos…] têm sido de grande ajuda para ti?» (Citação de Taras Bulba, de Nicolai Gógol)


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 1/1/2025, 11:09

Não dá para admirar: quem viveu uns bons tempos à custa das vantagens económico-financeiras do IMPÉRIO "OCIDENTAL-DEMOCRÁTICO" e das migalhas que foi deixando cair, custa-lhe agora ficar a "chuchar no dedo" e ter que "arregaçar as mangas" para comer um caldo de sopa antes de adormecer.
Se não me engano, 2025 vai-nos meter isso pelos olhos dentro: os IMPÉRIOS - com sua exploração "assanhada", já não são "solução" de "boa vida". A Industrialização levou tempo, mas derrotou-os. A China que o diga.
E os nossos "comentadores" Generais de bancada, que se cuidem...


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