O que a onda de despedimentos anuncia
Urbano de Campos — 20 Dezembro 2024
Com ar ufano, o primeiro-ministro fez-nos saber que Portugal é “um farol de estabilidade” na Europa – nas finanças, na política, na paz social. Montenegro não podia ter escolhido melhor ocasião para o auto-elogio: precisamente quando milhares de trabalhadores são lançados no desemprego por centenas de empresas que promovem despedimentos colectivos, e quando mesmo os economistas mais optimistas e os empresários mais voluntariosos anunciam que está montado o palco para uma tempestade perfeita que ameaça o país e toda a Europa.
As notícias recentes de despedimentos, às centenas, sobretudo na região norte, destacaram a indústria do ramo automóvel e relacionaram o facto com a dependência (real) das empresas portuguesas face às quebras de vendas e à retracção das encomendas originadas nas empresas-mãe na Europa. Mas o problema não atinge apenas a indústria automóvel, nem é de agora. Grande parte da indústria transformadora está atingida pelo mal (incluindo têxteis, vestuário, calçado e outros), e o processo de despedimentos sofreu um grande impulso desde o ano passado.
Despedimentos colectivos em crescendo
Em 2023, mais de 430 empresas comunicaram despedimentos colectivos, o valor mais alto desde 2015, excepto 2020 marcado pela pandemia. No último trimestre de 2023, verificou-se um aumento de 200% no número de despedimentos face ao último trimestre de 2022. Em cima disto, no primeiro trimestre de 2024, os despedimentos colectivos quase duplicaram (mais 82%) em relação a igual período de 2023 (dados da Direcção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho).
Até agosto de 2024, os despedimentos colectivos tinham ultrapassado os de todo o ano de 2023 (3929 contra 3622). Até final de 2024, os números falam em 318 empresas e 4.190 trabalhadores. E 2025, só na região norte, ameaça com mais 800 despedimentos colectivos entre insolvências e encerramentos de empresas.
Segundo o Ministério da Justiça, até setembro de 2024 foram declaradas 6.900 insolvências, sendo o sector da indústria transformadora um dos mais penalizados. A região de Lisboa e Vale do Tejo lidera, desmentindo a ideia de que apenas o Norte está a ser atingido. Naturalmente, em face da estrutura empresarial portuguesa, 75% das falências afectam micro e pequenas empresas; mas, quando se olha para o número de trabalhadores envolvidos, um terço pertence a grandes empresas.
“Renovação”?!
A tentativa de disfarçar a sombra que paira, leva mesmo a que personagens prestáveis vejam nesta onda de despedimentos e de colapso de empresas um sinal de “renovação” da economia. Como que apatetados diante de uma má surpresa, alguns economistas-comentaristas tentam a fuga para a frente: isto, dizem eles, pode ser bom para a economia, sectores obsoletos serão substituídos por outros mais dinâmicos, entretanto é preciso proteger “as pessoas”, dar-lhes formação para encontrarem saída…
Mas o que está em marcha não é nenhuma renovação virtuosa da economia portuguesa ou europeia, é a queda numa recessão que ameaça varrer mais uma boa parte da riqueza social, já de si delapidada pela crise de 2008, pela pandemia e agora pelos efeitos devastadores da política de guerra na Ucrânia.
Os sinais, com efeito, não são de coisa passageira ou ligeira. A quebra que se verifica nos principais centros económicos europeus, nomeadamente França e Alemanha, tende a arrastar para o fundo as economias mais débeis deles dependentes. A decisão do BCE de reduzir as taxas de juros – antes mesmo de ser alcançada a meta, antes considerada crucial, dos 2% de inflação – revela que é a quebra dos negócios que ocupa agora o primeiro lugar das preocupações dos agentes do capital.
A guerra em pano de fundo
O patronato, pela voz das confederações, queixa-se do que é óbvio: aumentos de custos de produção (não certamente por causa dos salários, que continuam a perder poder de compra); piores condições de financiamento (não porque os bancos não tenham ganho fortunas escandalosas, como é sabido); conjuntura externa “particularmente adversa” (mas então a entreajuda dos países da União Europeia afinal não funciona?); o eixo franco-alemão “dá sinais de fadiga” (mas não diziam que a coesão europeia se reforçou com a guerra na Ucrânia?).
Pois é… O apoio financeiro e militar à Ucrânia “até onde for preciso”, o descalabro económico e a perda de mercados causados pelas sanções à Rússia, o aumento astronómico do preço da energia (agora comprada aos EUA a preços de agiota), os riscos de limitação do mercado chinês por exigência do imperialismo norte-americano – tudo isto, em cima do declínio senil do capital imperialista, está a levar a economia europeia à ruína, com reflexos especialmente dramáticos nas pequenas economias dependentes como a portuguesa.
Nem o recurso à indústria de guerra, como pretendem os falcões de aquém e além Atlântico e todos os imbecis que os seguem, parece poder atenuar a “tempestade perfeita” que se anuncia.
A receita não muda
Deixemos de lado as basófias do primeiro-ministro e dos propagandistas de serviço e atentemos nas palavras do patronato, que essas é que podem dar sinal da política que o Governo, solícito, se prestará a pôr em prática.
Diante das agruras que o capital português antevê – não apenas a indústria afectada pela perda de encomendas e de mercados, mas também o comércio e serviços com a quebra de poder de compra nacional, e o turismo com a retracção na Europa – o presidente da CIP reclama que se crie um “ambiente regulatório com maior flexibilidade”. Traduzido, isto significa, sem novidade, relaxamento das leis laborais: mais trabalho precário, maior facilidade de despedimento, redução ou eliminação de indemnizações por despedimento, corte nos impostos sobre o capital e consequente redução de apoios sociais, etc.
Ou seja: a receita de sempre do patronato, que é tender para a escravização da força de trabalho, fazendo pagar os custos da quebra dos negócios pela massa trabalhadora. Nenhuma outra solução sai das cabeças dos patrões, economistas, políticos ou propagandistas que os servem – sinal de que todos eles vivem num mundo já sem futuro e sem alma.
Nota final
Duas empresas da região de Palmela, a Vanpro e a Tenneco, fornecedoras de equipamentos para a AutoEuropa, vão encerrar porque a Volkswagen decidiu adquirir os fornecimentos noutras empresas, nomeadamente na Tunísia, por “razões económicas”. Isto é, para cortar custos e lucrar mais. Só na Vanpro, 475 trabalhadores vão ser postos na rua.
A frase convencional de que “são as empresas que criam emprego”, adquire especial ridículo nas condições acima relatadas, bem como nos dois casos relacionados com AutoEuropa. Esse é um dos argumentos usados, sobretudo numa época de capitalismo decadente, por exemplo, contra o investimento público, como foi visto nas críticas dirigidas à distribuição das verbas europeias do Plano de Recuperação e Resiliência, que o patronato queria ver, se possível por inteiro, nos bolsos dos privados.
A evidência mostra que as empresas criam emprego quando os negócios prosperam, e criam desemprego quando decaem. Não há quaisquer “valores sociais” a ponderar nem num caso nem no outro. É essa a lógica única do capital – e é também por isso que a erradicação do capitalismo e o combate pelo socialismo faz sentido para as classes trabalhadoras.
À vista desta realidade, o lamento da Coordenadora das Comissões de Trabalhadores da AutoEuropa – condenando a “irresponsabilidade social” da Volkswagen por despedir 475 trabalhadores “apenas por uma decisão economicista” – não tem nenhum conteúdo político e por isso não ajuda os trabalhadores a compreender o antagonismo entre capital e trabalho subjacente, no caso, aos despedimentos que estão em marcha.
Comentários dos leitores
•Carlos da Mata 20/12/2024, 23:01
pois é bom de ter artigos assim. E praticos.
Vê-se logo o que os sindicatos podem fazer...
A VW/Audi em Bruxelas pôs à porta 3.000 trabalhadores. Não é um fenomeno unico.
A classe operaria vai ao Paraíso, dizia o filme. E com este governo de direita, não esta acabado de chegar... mas precisam de gente na polícia e no exercito para ajudar!
•MANUEL BAPTISTA 21/12/2024, 7:36
O que agora faz falta não será analisar "quem tem razão " em dizer isto ou aquilo.
Nestas circunstâncias, é somente eficaz a crítica da ação e retirar a vantagem ao patronato em agir como faz, mesmo que esteja protegido pelo Estado e pelo governo.
Abraços