OE2025, tanto barulho por nada

Manuel Raposo — 5 Novembro 2024

Uma combinata entre PS e PSD para chamar a si todo o debate

O debate prévio sobre o Orçamento do Estado tinha já várias semanas de duração, com ameaças de ruptura de parte a parte entre PSD e PS, quando o ministro dos Assuntos Parlamentares resumiu o sentido de tão acesa polémica dizendo “andamos no fundo a dizer a mesma coisa”. O mais caricato da situação está ainda no facto de toda a discussão se ter travado sem que fosse conhecido o conteúdo do OE, só recentemente apresentado para debate na Assembleia da República. Mais do que novela, como foi dito, tratou-se de uma farsa de baixo nível.

A arrastada discussão em torno de dois anunciados pontos do OE – o IRS Jovem e a baixa do IRC – constituiu, em termos práticos, uma combinata entre PS e PSD para chamar a si todo o debate, excluindo do espaço público as demais forças partidárias (só marginalmente citadas), e determinar a “ordem de trabalhos” política do momento. IRS e IRC foram o abcesso de fixação que permitiu fazer passar, sem verdadeiro conhecimento público, o concreto OE que estava na forja, concebido a quatro mãos por PSD e PS. A aprovação na generalidade, viabilizada pelo PS a 31 de outubro, consumou o entendimento.

Esta manobra deu tempo e espaço às associações patronais para agirem atrás do pano. Através de negociação no Conselho Económico e Social (vulgo, Concertação Social), estabeleceram com o Governo e com a sempre prestável UGT as linhas mestras da chamada “política de rendimentos” que, como é hábito, só confere aumentos salariais mínimos e na condição de proporcionar alívios fiscais ao patronato. Exemplo: as empresas que no próximo ano aumentarem salários beneficiam de descontos fiscais no IRC correspondentes a 50% daqueles aumentos. Politicamente, o acordo serviu de sinal ao PS de que o patronato estava com o Governo e não tolerava aventuras eleitorais.

A ameaça de “crise política” (nome dramatizado por Marcelo Rebelo de Sousa para um simples contratempo orçamental) foi brandida para dar ao entendimento PS-PSD – tacitamente estabelecido desde início – o ar de uma séria batalha política em defesa dos interesses “dos portugueses”. Argumentou-se que “o povo” não queria repetir eleições para evitar paralisar o país, quando o que sucede é que o povo se mostra farto de eleições porque não acredita que elas alterem seja o que for.

Na verdade, nenhum partido queria ir a votos porque todos temiam, de uma forma ou outra, perder deputados e peso político, ou não ganhar nada que valesse a pena. E o patronato, unanimemente, não queria de modo nenhum que a actividade, mesmo periclitante, do Governo fosse interrompida, pelas consequências negativas que isso teria no arrecadar do maná do PRR.

Os riscos pendentes da situação internacional foi outra das armas apontadas à cara de um público atónito. A Ucrânia e o Médio Oriente foram trazidos à baila como quem alerta para a eventualidade imponderável de um cataclismo natural. Mas, em ambos os casos, cabe responsabilidade aos dirigentes políticos portugueses naquilo que vier a acontecer, na medida em que apoiam sem réplica a política guerreira dos EUA, colaboram cegamente em sanções, cortam laços comerciais importantes, contribuem para a carestia, comprometem-se com gastos militares acrescidos, assistem impávidos à pirataria de Israel. Arriscam-se, na circunstância, a colher a tempestade dos ventos que estão a semear. Com a agravante de, neste caso, todos sermos colocados em risco – porque, se esse “cataclismo” vier mesmo, de nada valerá a tão prezada estabilidade governativa ou orçamental.

Os partidos da esquerda parlamentar disseram tudo o que se poderia dizer do OE em si mesmo, isto é, dentro daquilo que pode ser entendido como crítica “positiva”, destinada a mostrar o que poderia ser um “melhor” orçamento do Estado. De facto, se em vez dos apoios ao capital privado, das reduções de impostos ao patronato, das privatizações de empresas e serviços públicos, da manutenção do marasmo nas escolas e nos serviços clínicos – se, em vez disso, o grosso das verbas do Estado fossem para habitação, saúde, salários, pensões, investimento público, seria evidentemente melhor. Mas a pergunta que não pode deixar de se fazer neste caso é a de saber porque é que as coisas marcham como o Governo e o patronato querem e não de outra maneira.

Falta então dizer duas ou três coisas básicas que permitam perceber porque são os OE como são e não como seria desejável para a maioria da população trabalhadora – por mais virtuosas críticas e propostas de emenda que se façam:

Todo o dinheiro do OE provém do trabalho, sejam os impostos cobrados sobre os salários ou sobre os lucros, uma vez que também estes resultam do trabalho e não do capital. Portanto, por maior que seja a generosidade do Governo, ou de quem critique o Governo pelas medidas que toma, o resultado ficará sempre aquém do que é socialmente justo e aquém do que seria uma gestão das verbas disponíveis por quem as produziu.

É o poder, através de quem o exerce directamente e de quem, na “oposição”, lhe propõe medidas correctivas, que destina a aplicação a dar a todo o valor que foi socialmente produzido. As emendas que venham a ter cabimento na chamada discussão na especialidade não irão alterar esta realidade.

A gestão dos dinheiros ditos públicos será feita, inevitavelmente, em favor do capital no seu conjunto, por mais apoios que sejam atribuídos a interesses da colectividade, porque o sistema social assenta no domínio da propriedade privada, na obtenção de lucro, na exploração do trabalho. É na condição de estes interesses serem servidos que a resposta por parte do Estado a necessidades sociais será calibrada.

O desenvolvimento e o crescimento económico que todas as forças do regime reclamam passam sempre por um crivo que é o do desenvolvimento e do crescimento económico do capital. O interesse privado é assim apresentado como sendo o veículo incontornável do interesse geral.

O nível de emprego, de salários, de pensões, de benefícios sociais está sempre subordinado a uma repartição desigual em que o capital tem primazia, justificada com o argumento falso de que é o capital que cria valor.

A repetida afirmação moralista de que só se distribui o que se cria é uma justificativa para manter pressão sobre os salários e para que os trabalhadores deem mais trabalho ao capital a fim de aumentar a produtividade. O argumento mascara o facto de o capital não distribuir nada de seu, mas apenas a parcela que tem de ceder, daquilo que usurpou, para fazer funcionar a máquina social. Mascara também o facto de essa cedência, feita através dos seus representantes políticos no poder, não atingir, por regra, os seus lucros, como é o caso das compensações fiscais a troco de aumentos salariais. Os apelos ao aumento da produtividade, no quadro em que vivemos, traduzem a pressão do capital para aumentar a margem de trabalho não pago.

Estas verdades não contribuem para “melhorar” o OE nem para mitigar as consequências que dele decorrem. Mas podem certamente alertar para a distância que vai entre o uso que os governos fazem das verbas orçamentais – socialmente produzidas – e o uso que delas seguramente seria feito se os trabalhadores tivessem nas mãos o poder de as gerir.

 

 

 

 

 


Comentários dos leitores

Manuel Baptista 5/11/2024, 13:59

Conclusão: temos de nos autoeducar em não dar cheques em branco (votos) aos partidos, sejam eles quais forem, mas a tomar em nossas mãos a produção e gestão da sociedade


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