Quem insiste em apoiar o Ocidente…
Editor / O Comuneiro — 31 Outubro 2024
Quem insiste em apoiar o Ocidente na sua luta existencial deve saber que está a apoiar a guerra permanente, o fascismo, o genocídio e, em última instância, a extinção da humanidade. Estas palavras, da introdução ao número de outubro da revista O Comuneiro, abrem caminho a um conjunto de artigos que vão desde a abordagem das características do imperialismo na sua fase contemporânea até à história da violência e da desigualdade a que as mulheres têm sido submetidas.
De permeio, textos sobre a natureza política da dívida dita soberana, os movimentos populares em defesa do Planeta, a história da ascensão sangrenta do Ocidente, o renascimento da África Vermelha, ou a atenção dada por Lenine ao papel que a Ásia viria a ter no combate ao imperialismo.
OCIDENTE E GENOCÍDIO SEMPRE FORAM INSEPARÁVEIS
Ângelo Novo / Ronaldo Fonseca, www.ocomuneiro.com
O genocídio não é uma afeção de Israel, mas de todo o império ocidental, de que Benjamin Netanyahu é, verdadeiramente, nesta hora, herói e paladino supremo. Ao longo de toda a sua história, Ocidente e genocídio sempre foram inseparáveis. A “ordem baseada em regras”, da NATO e do Consenso de Washington, é absolutamente inviável, impensável mesmo, sem o genocídio, que lhe é absolutamente constitucional. As vítimas, essas, não se contarão já apenas em algumas dezenas de milhares, senão em milhares de milhões. O horror está ainda nas suas primícias, com uma sanha sanguinária quase inocente. O que aí vem, na sua sequência, será o inimaginável.
Quem insiste em apoiar o Ocidente na sua luta existencial pela manutenção do seu atual estatuto de raça senhorial branca (com cooptação de alguns aculturados coloridos para melhor “branquear” a sua imagem), com o inerente aprofundamento da rotura metabólica no presente equilíbrio sistémico integrado do planeta, deve saber, desde esta hora, que está a apoiar a guerra permanente, o fascismo, o genocídio e, em última instância, a extinção da humanidade. Não é uma parca responsabilidade, pelo proveito equívoco de participar até ao fim na espetacular feira das vaidades e da hipocrisia demo-humanitarista do capitalismo finalmente moribundo.
[Colocar o destino em mãos capazes]
O capitalismo estará moribundo, mas não morreu ainda, nem é seguro que possamos sobreviver-lhe. O primeiro requisito para o conseguir é colocar o destino das sociedades humanas em mãos capazes de uma ação coletiva consciente e direcionada, resgatando-o do livre jogo entre fúrias compulsivas digladiantes, que o tem regido sob o capitalismo, com submissão ao imperativo último da acumulação privada. Como é sabido, o império irrestrito do capital denomina-se a si próprio de liberdade e democracia, taxando de autocracias as sociedades capazes de direção consciente, seja esta passível ou não de escrutínio democrático.
Antes do mais, é imprescindível interromper já o caminho do barranco dos cegos. Uma vez que sejam irremissivelmente derrotados o imperialismo ocidental e todas as potências irracionais da mentira e do caos que ele expele por todos os poros, já não nos bastará somente esse resultado. A luta anticapitalista prosseguirá, com vista a erradicar em todos os azimutes a lógica do lucro e da acumulação privada.
Do capitalismo politicamente regulado, passar-se-á então ao socialismo e ao comunismo, que é o horizonte que permitirá, enfim, restaurar os equilíbrios metabólicos rompidos e garantir a manutenção sustentável da vida humana neste planeta. Trabalhadores e comunidades de vizinhança devem organizar-se para tomar em mãos a gestão de todos os seus espaços de vida, labor e de residência, participando de todas as decisões relevantes ao nível nacional, regional e mundial.
[Salvar o Ocidente?]
Há quem faça o raciocínio inverso: que será preciso salvar o Ocidente e a sua “democracia” liberal maravilhosamente culta, transparente e esclarecida, para, sobre ela, erguer, enfim, o poder dos trabalhadores associados, que irá prontamente em socorro e assistência aos povos desvalidos do Sul global. Essa perspetiva tem uma longa história no movimento socialista. Foi sempre própria da ala mais próxima da traição. Traição ao ideal da comunidade humana universal, que acaba por ser também, inevitavelmente, traição às próprias classes populares das metrópoles imperialistas. O seu prestígio e plausibilidade tem vindo a declinar constantemente. Não cremos já que alguém com um mínimo de informação e lucidez ainda a possa defender hoje de boa fé. Mas enfim, estamos sempre prontos ao diálogo. Até que as linhas do combate se formem definitivamente e o campo do Ocidente mande cerrar fileiras, baixando, enfim, com estrépito, a viseira do seu luzidio elmo neofascista.
[Uma marcada degradação]
O Ocidente perdeu a guerra na Ucrânia e está a perder, se é que não perdeu já, a guerra na Palestina. É muito provável que, movido por uma compulsão irresistível, como um ébrio irado olhando em volta com uma navalha na mão, provoque de seguida uma guerra com Cuba, a Venezuela ou mesmo com a República Popular da China. Não o espera aí melhor sorte. Sic transit gloria mundi.
Porque todo o sistema imperialista é baseado na intimidação e na extorsão, em resultado destes sucessivos reveses militares, o dólar norte-americano e o sistema financeiro doentiamente especulativo que nele se baseia vão inevitavelmente sofrer uma marcada degradação.
Tudo, aliás, se pode precipitar de uma forma súbita e catastrófica, a qualquer momento, neste ano ainda ou no próximo. Enquanto isso, a mediosfera ocidental continua, de forma sonâmbula, a evidenciar a mesma autoconfiança omnipotente. Mas os atores políticos reais, em todo o mundo, não vêem muito a televisão dos brancos. Fazem outras contas e, sobretudo, ultimam outros planos.
[Neste número de O Comuneiro]
Há todo um mundo que hoje sentimos em retrocesso, mas que, ainda bem recentemente, era para ser o nosso futuro indisputado. Como dizia Bertold Brecht: os tiranos fazem planos para mil anos. Cheng Enfu e Lu Baolin traçam as linhas gerais desse neoimperialismo, situando-o numa linha evolutiva que nos trouxe desde o imperialismo analisado por Lenine há cerca de um século atrás. Este era já então visto como um fenómeno em putrefação, mas a sua agonia prolongar-se-ia ainda até aos dias de hoje, tenazmente. Se não for atalhada agora, arrastar-nos-á a todos para o abismo final. Publicado há três anos, o artigo parece retratar o mundo de ontem. Puro engano. Ainda está aí e debate-se encarniçadamente, com a sanha do desespero. Encaremo-lo.
A dívida é o modo de dominação predominante no capitalismo globalizado de hoje. Foi por ela que o imperialismo se soergueu, uma vez mais, há cinquenta anos atrás, após a derrota no Vietname, até se alcandorar novamente às cumeadas dominantes da globalização neoliberal. Como salientam Radhika Desai e Michael Hudson, importa sobremaneira que não suceda o mesmo agora, sendo para isso indispensável que se forme uma frente unida de países do Sul concertados no repúdio das dívidas odiosas que os tolhem e escravizam.
David Barkin e Brian Napoletano defendem que um sujeito revolucionário comunitário, capaz de transcender a lógica metabólica de rotura suicida que o capital engendrou, tem de ser encontrado com recurso às práticas e mundivisões holísticas de diversas comunidades agredidas, isoladas e marginalizadas pela ordem social dominante.
É precisamente essa a experiência militante de resistência popular de base, em defesa de modos de vida em harmonia simbiótica com o meio ambiente natural, que Ashley Dawson descreve como “ecologismo desde abaixo”. É preciso ligar, federar e sintetizar todas essas experiências de luta, criando a partir delas uma agência transformadora efetiva, armada com os instrumentos de racionalidade crítica anticapitalista mais acerados e penetrantes.
Há uma coisa que todo o mundo sabe, menos o Ocidente, que procurou obnubilá-lo com todo o tipo de efabulações e fantasias: a ascensão e destaque do West em relação ao Rest foi conseguida, primariamente, por meio da sua disposição agressiva e da superioridade evidenciada na ministração da violência organizada. Aliás, seja dito de passagem, é a perda dessa mesma “vantagem comparativa” que está agora na base da sua queda. Como sucedeu, até hoje, com todas as civilizações, foi depois de estabelecida, à mão armada, uma relação de domínio e exploração que, no polo dominante, ocorreu um desenvolvimento cultural diferenciador. Prabir Purkayastha faz-nos uma breve mas esclarecedora sinopse desse processo global de conquista, pilhagem e sequestro.
Lenine almejava uma revolução mundial proletária, tendo, para o efeito, desde muito cedo, colocado os seus olhos amendoados, com esperança, no leste asiático. Daniele Burgio, Massimo Leoni e Roberto Sidoli recordam alguns momentos em que o dirigente máximo da revolução de outubro evidenciou esse pendor asiocêntrico, extraindo daí algumas conclusões válidas para a atualidade. De entre os humilhados e ofendidos da Terra, os negros foram dos primeiros a rejubilar com o clarão da revolução soviética. Lenine assistiu ainda e acarinhou o nascimento da tradição do marxismo negro, em ambos os lados do Atlântico, que viria a desembocar depois na vanguarda mais consistente da onda emancipatória da década de 1960. É essa tradição militante e vitoriosa que se procura denegrir e soterrar com os modismos intelectuais do Afropessimismo e da Decolonialidade, conforme denuncia Kevin Ochieng Okoth, num livro aprovadoramente recenseado por Vijay Prashad e Mikaela Nhondo Erskog.
Não é suficientemente realçado, mesmo entre as vozes mais críticas, que a ordem social univocamente imposta ao mundo como não tendo qualquer alternativa se baseia, afinal, numa monstruosa e grosseira impostura intelectual. Andrea Zhok percorre paciente e proficientemente, com o seu bisturi analítico, os mais surpreendentes labirintos da economia neoclássica, com todas as suas canhestras e arbitrárias manipulações.
Neste momento de perigo humanocida, Michael Löwy propõe teses, à maneira de Lenine – e parafraseando um seu título célebre – para contornar a catástrofe iminente por meio da revolução.
Nas origens da aventura humana podem estar algumas chaves essenciais para abrir pistas em direção a uma sociedade humana em equilíbrio homeostático consigo própria e com o seu meio ambiente. Ou seja, uma verdadeira comunidade. Nesse sentido, um dos enigmas ainda não completamente decifrados é o da origem da opressão feminina. Elaine Graham-Leigh oferece-nos uma valiosa recensão crítica de um livro recente que pretende abrir novas hipóteses sobre essa matéria.