Mais justiça, menos polícia!
Urbano de Campos — 26 Outubro 2024
Os factos. Um cidadão que regressa a casa de noite é morto por uma patrulha da polícia com duas balas no peito disparadas à queima roupa. Para matar, portanto. O comando da PSP emitiu de imediato um comunicado dizendo que a vítima ameaçara os polícias com uma faca. A vítima, porém, não estava armada.
O próprio agente implicado nos disparos desmentiu o comunicado, confessando à Polícia Judiciária que a vítima estava desarmada. Tratou-se, portanto, de um assassinato a sangue frio e não de uma reacção em legítima defesa. O comando da PSP, agindo por antecipação, mentiu – no que só pode ser entendido como uma tentativa de encobrir o crime.
Qual a cor da pele da vítima? Negra. Identificação: Odair Moniz, cabo-verdiano, três filhos, trabalhador, morador no bairro social do Zambujal, dono de um pequeno café na Cova da Moura para safar a vida.
A revolta. Em vários bairros de Lisboa e dos concelhos periféricos desencadeiam-se protestos, protagonizados sobretudo por jovens negros revoltados. Durante quatro dias, caixotes de lixo, pneus, autocarros e automóveis são incendiados. Se não fossem estes protestos, o crime seria apenas mais um que morreria num arrastado processo de inquérito.
A polícia cercou os bairros ditos “sensíveis” (isto é, habitados por população negra e imigrada) impedindo os moradores de circular, ir trabalhar, ou regressar a casa. É imposto um estado de excepção de facto que não foi previamente sancionado por qualquer decisão dos órgãos constitucionalmente competentes para o efeito. Para o poder, a Constituição serve quando serve.
À polícia é dada carta branca para reprimir protestos e prender. Escudado neste poder, um destacamento policial de 15 agentes arromba a casa da família de Odair Moniz. À procura de “provas” que, de algum modo, fizessem de Odair um bandido e justificassem o assassinato? – tudo é possível.
Os comentários. Nos dias seguintes, fala-se exclusivamente dos protestos e dos actos dos jovens revoltados. O crime é posto na sombra pela comunicação social e pelo séquito de agentes políticos e comentadores que saem sempre a terreiro nestas ocasiões para selecionar a informação e moldar o pensamento do público.
Clama-se por “Terrorismo!” para condenar a revolta. Um distinto advogado-comentador (Paulo Saragoça da Matta) condena, via televisão, a informação dada a público de que a vítima não tinha qualquer faca consigo. Disse ele que essa revelação deveria ter sido mantida em “segredo de justiça” porque estava a contribuir para acicatar a revolta. Ou seja, este agente da Justiça juntou-se ao comando da PSP achando que a mentira é método válido para esconder um crime e manipular a opinião pública.
Não se pode confiar. Não se pode confiar nas autoridades policiais, que dispõem de licença para matar e garantia de que serão defendidas a partir do topo da hierarquia – com mentiras se preciso for.
Não se pode confiar na máquina da Justiça, pronta a encobrir ou a atenuar os crimes da polícia em nome da “ordem pública”, com o argumento ardiloso de que os “erros” dos agentes não põem em causa a instituição – ficando sempre por explicar que relação necessária há entre os repetidos “erros” e a instituição.
Não se pode confiar na eficácia dos preceitos constitucionais. O poder serve-se deles como bem quer, invocando-os ou desprezando-os consoante a vantagem do momento.
Não se pode confiar nos comentadores ou nos agentes políticos do poder, sempre dispostos a omitir a origem dos acontecimentos (no caso, um assassinato gratuito) e a turvar os olhos e o entendimento do público com condenações morais e apelos ao bom senso.
A ordem das coisas. Foi o homicídio de Odair que esteve na origem da revolta e dos desacatos. É por esta ordem de prioridades que tudo o que sucedeu a seguir deve ser julgado.
A revolta está latente entre as camadas mais pobres, reprimidas e discriminadas da população. A sua explosão é um facto que apenas expressa a condição social de gente marginalizada sob todos os pontos de vista. Uma parte considerável do proletariado mais pobre, nomeadamente o que é oriundo da imigração, vive em condições insuportáveis. A sua revolta é, não apenas um facto irreprimível, como um direito perfeitamente legítimo.
O Poder. Governo, presidente da República, partidos do poder e da direita, todos afinaram pelo mesmo diapasão: a prioridade de repor a ordem pública, o reforço da intervenção policial. Primeiro, condenar os “desacatos” – quanto ao crime que lhes deu origem logo se verá (após inquérito…).
O primeiro-ministro garante que todos os meios serão dados à polícia para repor a ordem. O que deveria ser uma condenação do crime (mais um) cometido pela polícia, e uma avaliação da impunidade que rodeia os actos da polícia, transforma-se no seu contrário: o elogio do papel repressivo das polícias.
Os fascistas exultam: os agentes não devem ter medo de disparar, disse o dr. Ventura; a polícia deveria atirar a matar mais vezes, reforçou o líder parlamentar do Chega.
Democracia. O respeito pela democracia é invocado para condenar a revolta: os jovens que saíram à rua, dizem, deviam manifestar-se nas margens da lei, pacificamente (como carneiros descontentes?).
Que valor pode ter esta democracia para quem vive reprimido, desempregado, sem escola, discriminado pela cor da pele, sem casa, sem vislumbre de melhoria, e pode ser baleado à queima-roupa numa rusga policial de rotina?
Que consideração pode haver por instituições como a Assembleia da República que albergam gente do calibre do Chega? Ou pelos corpos policiais, que acolhem racistas e fascistas prontos a seguir as sugestões do dr. Ventura? Ou pela Justiça, que leva dez ou vinte anos a julgar crimes de colarinho branco e encontra sempre atenuantes para os crimes policiais?
A esquerda. As forças da esquerda parlamentar condenaram a actuação dos agentes da PSP e exigem averiguação das condições da morte da Odair. Mas, a par disso, insistem na utopia de uma “polícia democrática”, escrupulosa respeitadora da lei, da Constituição e dos direitos dos cidadãos. O BE, particularmente, esforça-se, nos limites do ridículo, por demonstrar a sua confiança nas polícias como instituições democráticas. Os factos apontam noutro sentido.
Essas forças políticas esquecem que as polícias são um corpo repressivo, estranho à massa trabalhadora e popular, treinada para reprimir, bater, prender e, se necessário, matar para defender a ordem vigente – porque é essa a missão que lhe está atribuída no quadro das instituições do poder.
Essa ordem – lembremos o básico – é a do capital, a da liberdade dos negócios, a da propriedade privada, a do direito a explorar mão-de-obra para enriquecer, a de manter salários abaixo do nível de sobrevivência, a de especular com o imobiliário, a de privar os trabalhadores de casa digna atirando-os para barracas nas periferias onde não há escolas, nem creches, nem transportes. A mesma ordem que cultiva o racismo como forma de manter sob pressão a massa dos trabalhadores imigrantes porque isso se traduz em salários baixos, medo e bico-calado.
E é aqui que tudo se liga a Odair Moniz, cabo-verdiano. Ou aos trabalhadores marroquinos e argelinos que, no Porto, foram espancados por um gangue de “justiceiros” fascistas. Ou aos trabalhadores do sudoeste alentejano mantidos em quase-escravatura para lucro de empresários agrícolas.
Comentários dos leitores
•leonel l. clérigo 26/10/2024, 13:42
Há ensinamentos que as Sociedades não devem esquecer apesar das "Contra-Ordens" vindas "de cima".
1 - Ainda vivemos - espero que não até à eternidade - em Sociedades REPARTIDAS por CLASSES SOCIAIS. Isto quer dizer que cada uma delas acaba por ter uma "função": a GRANDE MAIORIA TRABALHA para poder comer um "caldo de sopa ao jantar" (diz-se que "corpinho na cama aguenta muita fominha") e uma MINORIA que acaba a "ADMINISTRAR" - mais modernamente fala-se em GESTÃO - os que trabalham, vivendo "à grande e à francesa" desse árduo trabalho. E a observação geral mostra-nos que, de facto, os primeiros têm, e sem razão, uma "vida muito pior" que os segundos.
2 - Esta situação dita de DESIGUALDADE SOCIAL - acirrada nos Períodos de CRISE e visível a "olho nú" sem necessidade dos preciosos estudos da PORDATA - acaba por gerar em todos os níveis sociais CONFLITOS PERMANENTES. E para evitar esses conflitos inventou-se há já largo tempo o que se designa por ORDEM que se traduz, na PRÁTICA, numa REPRESSÃO SOCIAL VIOLENTA através de FORÇAS INSTITUÍDAS para isso - hoje ditas "democráticas" - no sentido de MANTER a ORDEM (de CLASSE, naturalmente).
Em suma: a VIOLÊNCIA da OPRESSÃO de CLASSE gera INEVITÁVEIS RESPOSTAS dos OPRIMIDOS a que se segue a contra-RESPOSTA da ORDEM INSTITUÍDA. Tudo isto é simples de entender sem necessidade de usar a graçola - na altura oportuna - de Vitor Gaspar: "O que é que o senhor não percebe?"
De facto, nada disto é NOVIDADE: qualquer "palonço das berças" sabe disto "a potes". Por isso não é "grande novidade" o que aconteceu - e vem e virá a acontecer por muitos anos "agudos" e bons - nos BAIRROS dos ZAMBUJAIS. A EXPLORAÇÃO SOCIAL com sua miséria presenteia-nos com coisas destas.
3 - Mas há um ponto relatado acima no texto de U. Campos que me parece ser de repisar: "O próprio agente implicado nos disparos desmentiu o comunicado, confessando à Polícia Judiciária que a vítima estava desarmada."
Isto parece vir a responsabilizar - além dos implicados diretamente - os poderes POLÍTICOS que gerem a REPRESSÃO e devem, em última instância, zelar pelo seu "BOM COMPORTAMENTO" concretizando directivas nesse sentido. Quando a resposta OFICIAL INICIAL é DESCULPAR-SE com uma INVERDADE (negada depois pelo próprio o que é de louvar) "MAL VAI O BARCO" da dita "GOVERNAÇÃO DEMOCRÁTICA" que se sabe há muito ser perfeita ALDRABICE numa SOCIEDADE de CLASSES.