Amílcar Cabral: nosso herói também

Editor — 20 Setembro 2024

A ideia corrente de que o golpe dos Militares de Abril nos libertou da ditadura peca pelo facto de colocar na sombra o papel, esse sim decisivo, dos movimentos de libertação anticoloniais que durante treze anos fustigaram o colonialismo português. Foi a luta armada, travada com sacrifício de, seguramente, muitas centenas de milhares de combatentes africanos, que, ao libertar do jugo colonial os novos países, fez ruir o fascismo português. A democracia portuguesa de 1974 é fruto dessa luta levada a cabo por africanos.

Um dos esquecidos é Amílcar Cabral. Nascido em 12 de setembro de 1924, foi um dos grandes ideólogos das independências africanas e o mais destacado dirigente político da guerrilha na Guiné-Bissau que viria a terminar na independência da Guiné e de Cabo Verde.

Assassinado em janeiro de 1973, já não pôde presenciar a declaração unilateral de independência do seu país no final desse ano, quando o território da Guiné-Bissau estava praticamente libertado, só restando algumas zonas urbanas ocupadas por forças estrangeiras, como ele dissera já em 1968.

A sua morte às mãos de elementos do PAIGC, foi acto de que o fascismo português procurou tirar partido para demonstrar que não tinha nada a ver com o assunto e tudo se devia a “dissidências internas”. Mas isto é a superfície da questão. Desde muito antes, o PAIGC e Cabral foram alvo de tentativas de destruição e de assassinato por parte da tropa colonial e da PIDE.

Data dos anos 1960 a colaboração, muito activa, entre os serviços secretos e os militares franceses e portugueses no sentido de procurar eliminar de uma assentada, quer a resistência guineense-caboverdiana, quer o regime de Sékou Touré, dirigente da Guiné-Conacri, independente da França desde final de 1958. Touré e Conacri eram na altura apoiantes das libertações africanas e guarida da direcção do PAIGC.

Em finais de 1970 – com a guerra já perdida para o regime fascista português – o governo de Marcelo Caetano, com o general Spinola (governador da Guiné-Bissau) e o comandante Alpoim Calvão organizam uma invasão naval de Conacri. Matam mais de 400 pessoas, mas não logram eliminar nem Touré nem Cabral nem o PAIGC.

Tem sido difícil aos colonialistas e à direita portuguesa digerir o fracasso das guerras coloniais, culminadas nas independências africanas de 1975, e o fim da ditadura. Satisfazem-se, todavia, em reabilitar os seus heróis-criminosos, entre eles Spínola e Calvão. Calvão foi condecorado pela enésima vez em 2010 com uma medalha de Comportamento Exemplar (!) e incensado como “brilhante estratega” e “referência” dos fuzileiros. Spínola, por seu lado, foi condecorado, em segredo, por Marcelo Rebelo de Sousa em julho de 2023 com a Ordem da Liberdade (!).

Não importou aos poderes democráticos que Calvão e Spínola tivessem desde início conspirado e atacado a tiro e à bomba o próprio regime democrático (perto de 600 atentados cometidos pelo MDLP até final de 1975, com pelo menos uma dezena de mortos) – o que só por si prova o cordão umbilical que liga uns e outros. É neste caldo azedado de uma democracia formal de que o povo está totalmente arredado que os novos fascistas e os colonialistas saudosos medram.

O desfile evocativo do centenário de Amílcar Cabral, marcado para este sábado 21, é também uma declaração de combate aos novos fascistas, aos racistas, aos que insultam e exploram os imigrantes, bem como  à cobardia dos que toleram tudo isto em nome duma ilusória “convivência democrática”.

Num momento em que a barbárie imperialista tem rédea solta, em que as forças populares, nacionalistas e progressistas que lhe resistem em diferentes partes do mundo são apelidadas de “terroristas” – importa recordar figuras como a de Amílcar Cabral que ousaram lutar e ousaram vencer. O outrora “terrorista” Amílcar Cabral é também nosso herói nacional.


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