“1984” em 2024

Manuel Raposo — 23 Agosto 2024

Em Gaza, quem resiste é terrorista, quem chacina exerce direito de defesa, diz o Ministério da Verdade

Quando George Orwell escreveu o seu romance mais famoso, acredita-se, teria em mente caracterizar o regime estalinista, ou ter-se-ia inspirado nele ou naquilo que à época se dizia dele. Mas a qualidade e a perspicácia da obra, pode hoje constatar-se, ultrapassa em muito essa real ou suposta intenção dirigida à URSS de então. “1984”, quarenta anos depois, sobrevive como retrato do nosso dia a dia.

O mundo concentracionário, policial, persecutório, mistificador da verdade, condicionador do pensamento individual e colectivo que Orwell ficciona; a perpetuação no poder das mesmas forças à custa de mentiras, de criação de realidades virtuais e de lavagens ao cérebro praticadas em grande escala com apoio de uma extensa panóplia de meios técnicos e científicos – tudo isso, que é costume atribuir ao mundo “não civilizado”, assenta como uma luva nas sociedades capitalistas ocidentais de hoje. O olhar omnipresente do Big Brother, a História manipulada pelo Ministério da Verdade, a acção profilática da Polícia do Pensamento estão presentes e activos, com recursos nunca antes vistos, no mundo decadente dos velhos imperialismos europeu e norte-americano. Por razões compreensíveis.

Dois acontecimentos maiores marcam os desenvolvimentos políticos da actualidade e a vida quotidiana de milhões de pessoas: a guerra que a NATO promove na Ucrânia e o genocídio que Israel leva a cabo na Palestina com o apoio dos EUA e da UE.

Trata-se de confrontos em que as potências ocidentais jogam a sua hegemonia, e que provocam uma separação de águas no resto do mundo. Por isso, todos os meios de domínio das opiniões públicas são postos em marcha para evitar que as estruturas de poder da Europa e dos EUA sejam abaladas por uma possível recusa das populações em tolerar o desgaste – material e moral – que conflitos prolongados sempre causam nas metrópoles que os promovem. Lembremos o colapso da ditadura portuguesa por força de treze anos de guerra colonial; a mudança de regime em França na sequência da guerra de independência da Argélia (1954-1962); os abalos no poder norte-americano resultantes da derrota no Vietname (1955-1975); etc.

A situação presente é ainda mais grave para as potências imperiais e coloniais em causa do que os exemplos acima citados. De facto, hoje, do outro lado da barricada não estão apenas povos ou nações numa luta mais ou menos individualizada e contando apenas com as próprias forças, mas um conjunto vasto de povos e nações que encaram a possibilidade real de se libertarem da tutela que o colonialismo e o imperialismo têm exercido sobre eles – e que para isso tentam coordenar esforços e agir conjuntamente.

EUA e UE, e todo o séquito de vassalos, tratam de prevenir consequências semelhantes a respeito da Ucrânia e da Palestina. A perseguição das vozes discordantes da orwelliana Verdade é crucial, a opinião pública e individual só pode ser a oficial, a História só pode ser contada da forma que convém aos poderes instalados.

Caça às bruxas. Da Argentina do destemperado Milei chega a notícia de que um ex-deputado no parlamento autónomo de Buenos Aires, Alejandro Bodart – hoje dirigente do Movimento Socialista dos Trabalhadores – foi acusado de “anti-semitismo” por ter afirmado que Israel é um Estado terrorista e que está a cometer um genocídio. A queixa foi apresentada pela DAIA (Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas) e, na primeira instância, foi recusada pelo tribunal, em nome da liberdade de expressão. Contudo, a DAIA recorreu e procura agora explorar o ambiente político criado pela presidência de Milei para obter uma decisão mais favorável, que constituiria um precedente contra a solidariedade pró-palestina e, genericamente, contra a liberdade de expressão.

Em nome da ordem. Na Alemanha e no Reino Unido, que sustentam a acção terrorista de Israel com o argumento (orwelliano) do “direito de defesa”, foram proibidas manifestações de apoio à Palestina sob o pretexto (orwelliano) de causarem perturbação da ordem pública.

Por toda a Europa e nos EUA – numa acção digna da Polícia do Pensamento – emissões de televisão, canais informativos e sites russos foram bloqueados para que só a informação do lado de cá seja acessível. “Rádio Moscovo não fala verdade”, como dizia o salazarismo.

A Meta, detentora do Facebook e do Instagram, acabou de excluir o site The Cradle, que se dedica a noticiar e a analisar a política da Ásia Ocidental, com o pretexto de este dar guarida ao terrorismo e incitar à violência ao divulgar dados informativos sobre a Palestina, o Líbano ou o Iémen com origem no Hamas, no Hezbollah ou o Ansar-allah.

“Quinta Coluna”. Entre nós, quase está esquecida a perseguição feita em Setúbal a associações russas que apoiavam a câmara municipal no acolhimento de cidadãos ucranianos. Uma denúncia de “espionagem” a favor de Putin foi lançada por uma associação de ucranianos dirigida por um reconhecido fascista, classificado como um patriota por um qualquer Departamento de Registos. As acusações vieram a revelar-se falsas, mas foram orwellianamente silenciadas.

A apresentação do livro de Bruno Amaral de Carvalho “A Guerra a Leste” – que mostra o outro lado da guerra na Ucrânia, ou seja, o que sofrem as populações do Donbass sob os ataques ucranianos – foi sucessivamente perturbada em Lisboa, em Coimbra e no Porto, por tentativas de boicote organizadas pelas tais organizações ucranianas, de braço dado com fascistas portugueses. As mesmas organizações que ousaram exigir a ilegalização do PCP, sem que ninguém do Estado português as mandasse calar.

As vozes que se atrevam a analisar a guerra na Ucrânia que não seja pelo prisma oficial de enaltecer Zelensky e desprezar Putin, ou falem do morticínio de Gaza sem desculpar Israel de algum modo, são sistematicamente desconsiderados por jornalistas e comentadores “situacionistas” que repetem até à náusea as mesmas frases e as mesmas falsidades oriundas das chancelarias e dos serviços de informação ocidentais. Fiéis ao Ministério da Verdade, todos eles juram que 2+2=5.

O espião Jorge Silva Carvalho – ex-director do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, condenado em 2016 a quatro anos de cadeia com pena suspensa por violação do segredo de Estado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados – foi recuperado pela CNN como comentador político, depois de ter sido recuperado por outro cadastrado, Isaltino Morais, como colaborador da Câmara Municipal de Oeiras. Numa das suas primeiras intervenções na CNN sobre a guerra na Ucrânia, apontou o dedo aos que não alinhavam pela versão oficial como pertencendo a uma “Quinta coluna” russa em Portugal contra a qual não deveria haver tolerância. A Polícia do Pensamento tem os seus agentes meticulosamente distribuídos.

Anti-semitismo. Por todo o lado, as acusações a Israel são rapidamente classificadas como prova de “anti-semitismo”, numa clara tentativa de, não apenas coagir, mas também colocar sob alçada da lei quem as ousa fazer. Deliberadamente, confunde-se anti-sionismo com anti-semitismo; insinua-se que os únicos semitas são os israelitas; joga-se com a ignorância comum do facto de os palestinos serem semitas; e esconde-se (com habilidade orwelliana) que grande parte dos israelitas judeus não são semitas, mas sim de origens étnicas diversas. O livro “A invenção do povo judeu”, do historiador Shlomo Sand, professor na Universidade de Telavive, constitui, logo a partir do título, uma denúncia.

A pretexto de “anti-semitismo”, Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista britânico, foi demitido e expulso do partido em 2020, num processo tão orwelliano como kafkiano. Na verdade, Corbyn ameaçava a política neo-liberal (comum a Conservadores e Trabalhistas) ao propor a renacionalização de serviços públicos e a redução do programa militar do Reino Unido, afectando a NATO, em favor do reforço das políticas sociais. Tanto bastou para que o Big Brother (no caso, uma simbiose conservadores-trabalhistas-sionistas) tratasse de atirar Corbyn para fora de cena.

Proxies. De cada vez que os noticiários mencionam o Hamas, o Hezbollah ou os Houthis, é obrigatório acrescentar “grupo terrorista”, “apoiado pelo Irão” ou “proxy do Irão”. Mas nunca se diz que Israel é um proxy dos EUA e da UE e que a sua conduta é evidente terrorismo de Estado. Ou que Zelensky é um proxy da NATO. No entanto, o financiamento e o fornecimento de armas a Telaviv ou a Kiev por parte das potências ocidentais não tem comparação com o que o Irão possa conduzir para os seus aliados do Próximo Oriente.

No caso de Israel, o orçamento de Estado norte-americano inclui, permanentemente, desde há décadas, verbas colossais que sustentam económica e militarmente o sionismo na sua missão de armar o caos na região. A Verdade orwelliana consigna que os aliados dos outros são mercenários a soldo e que os nossos aliados são gente de bem com vontade própria.

Os democratas e os outros. No Ocidente, por definição dos próprios, reina a democracia e plena liberdade para todos, mesmo quando os governos são compostos por forças fascistas, a censura abafa as vozes discordantes, os protestos de massas são reprimidos, os serviços sociais são degradados. Do outro lado, insistem, só existem tiranias com o propósito de destruir o “nosso” modo de vida e o “nosso” bem-estar. Como disse o troglodita Josep Borrell: isto aqui é um jardim, lá fora é a selva.

Com este argumento, as “Democracias” afadigam-se, desde há 500 anos, a colonizar tudo o que fica fora da Europa e dos EUA, para garantir o “nosso” modo de vida e o “nosso” bem-estar. A legitimidade que reivindicam para destruir adversários, explorar recursos alheios, empoderar governos a seu gosto sai directamente do universo pintado por George Orwell.

Estado de Guerra Perpétua. Por determinação do Ministério da Verdade, a NATO não passa de uma pacífica organização defensiva, mesmo se estende tentáculos por todo o mundo. A guerra na Ucrânia, que sacrifica centenas de milhares de ucranianos com o fito de desgastar a Rússia e ameaça um conflito mundial, é reconfigurada como trincheira da civilização ocidental. A política de guerra permanente do imperialismo, que alimenta a indústria armamentista consumindo gigantescos recursos sociais, é vendida a um público cândido como condição para uma vida pacífica.

O acto mais recente desta realidade de pernas para o ar decorre na Palestina. Israel não passa de um Estado terrorista, mas tem a chancela de uma democracia irrepreensível. É um agente mantido pelo imperialismo para as suas tarefas mais sujas, mas é-lhe outorgado o “direito de defesa” contra os que se defendem dele. É o exemplo acabado de um Estado pária que viola impunemente as determinações aprovadas pelas Nações Unidas, mas tem lugar cativo na chamada comunidade internacional.

Os palestinos, esses, mesmo quando se lhes reconhece o direito de se organizarem em Estado próprio, têm, na óptica do Ocidente, de se submeter às condições que o Ocidente entende razoáveis. É isso que decorre dos propósitos de norte-americanos e europeus de “reformularem” a Autoridade Palestina, excluindo o Hamas, a Frente Popular de Libertação da Palestina e outras organizações de resistência de qualquer possível governo. Numa tentativa de perpetuar o seu estatuto de colonizadores, são eles que se arrogam o direito de escolher quem deve “representar” os palestinos!

 

O universo asfixiante de “1984” só poderia subsistir se o mundo vivesse fechado num círculo vicioso, reproduzindo eternamente as mesmas relações de poder. Acontece que a realidade se alimenta de contradições, acabando sempre por encontrar saídas e criar alternativas aos poderes que em determinado momento parecem imbatíveis. É o que se desenha nos dois conflitos maiores do momento. A impotência da NATO para levar de vencida a guerra que patrocina na Ucrânia, e o desespero de Israel diante da sua incapacidade para dominar a balança de forças no Próximo Oriente dão sinal de que o imperialismo se afunda na sua própria soberba. As suas armas já não são imbatíveis. O mundo tende a dividir-se em dois campos. O tempo corre contra o Big Brother.


Comentários dos leitores

esteves ayres 24/8/2024, 15:28

Muito pouco tinha para dizer. Mas aqui vão mensagens muito importante:
Todos os que apoiam Israel têm as mãos sujas do sangue dos palestinianos e não as podem lavar!
A classe operária e o povo português estão ao lado dos operários e do povo da Venezuela!
Não à guerra civil que os imperialistas americanos e europeus preparam contra a Venezuela!
Levantemo-nos contra o genocídio do povo palestiniano!
Nenhum apoio a Israel!
Pelo Internacionalismo Proletário!
Proletários de Todo o Mundo, Uni-vos!
Avancemos no caminho da Quinta Internacional!
Não à guerra inter-imperialista?

Francisco Tavares 24/8/2024, 21:56

Excelente!

Francisco Tavares 24/8/2024, 22:06

Apenas um comentário: a penúltima frase parece-me dispensável. A realidade nunca é a preto e branco (como nas fotos antigas, e mesmo nessas há tonalidades...).

António 25/8/2024, 14:01

Incrivel a União Europeia. Nenhum país tem nos seus municípios uma bandeira da Palestina que esteja içada. Mas da Ucrânia sim.

MANUEL BAPTISTA 25/8/2024, 18:34

Quase ninguém se apercebe que os poderes do capital conjugados com os governos, estão realmente a desmontar o décor da democracia burguesa, como se fosse um cenário de teatro que agora é dispensável (Franck Zappa disse isso mesmo, há uns 40 anos, não tenho agora a referência exata).


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