A hora dos chacais

Manuel Raposo — 31 Julho 2024

Kamala Harris em Jerusalém com Netanyahu, 2017. Conhecidos de longa data

Quando confrontada com o ataque de Israel a Beirute, em 30 de julho, que matou um comandante do Hezbollah, a primeira declaração de Kamala Harris foi repetir o slogan “Israel tem direito a defender-se”. Horas depois, Israel matava pelo mesmo processo o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, que se encontrava em Teerão. Numa frase, Kamala Harris disse tudo sobre si própria e a sua candidatura para quem queira entender como são as coisas: deu luz verde a Israel para prosseguir as provocações ao Líbano e ao Irão, mostrou que não se distingue do seu patrono Biden, e confirmou o interesse crucial dos EUA na guerra promovida pelos sionistas – tenha ela a extensão que tiver, arrisque o que arriscar e adopte os métodos que adoptar. 

Tem sido fácil espalhar na opinião pública – justamente horrorizada com as barbaridades dos israelitas e pasmada com uma suposta “ineficácia” da diplomacia norte-americana – a ideia de que a fúria destruidora de Israel se deve ao esforço de Netanyahu para se manter no poder e escapar à perseguição judicial de que é alvo no próprio país. Também tem sido corrente dar a entender que a selvajaria do ataque a Gaza é fruto da pressão exercida sobre o Governo pela extrema-direita e os colonos judaicos. E tem igualmente sido insinuado que os EUA não conseguem pôr termo à guerra por estarem prisioneiros do lóbi judaico. Tudo isto pode em parte ser verdade e concorrer para a marcha dos acontecimentos dos últimos meses. Mas a questão de fundo tem de ser procurada noutro lado.

Um quadro alargado da situação do imperialismo nos anos recentes pode dar-nos uma imagem mais completa do que se passa no Médio Oriente e porque se comporta Israel da forma que se vê.

Recorde-se, primeiro que tudo, três coisas importantes para avaliar o assunto: uma, Israel foi e continua a ser o principal bastião político e militar dos EUA na região do qual não pode abdicar; duas, o Médio Oriente é uma região chave para conseguir controlar o fluxo mundial do petróleo, que é, de longe, a maior fonte de energia do planeta e a base do desenvolvimento económico; três, a região é um ponto charneira para ter mão, do ponto de vista militar-estratégico, nos três continentes que ali confluem: Europa, Ásia e África. 

Na última dúzia de anos, digamos desde 2011, os EUA perderam em várias frentes a influência e o domínio que até então exerceram de forma quase indisputada na vasta região que vai desde o Afeganistão à Palestina. 

Foram derrotados na guerra da Síria, não conseguindo derrubar o regime de Bashar al-Assad como queriam. Ao contrário, viram crescer a influência dos russos, que o governo sírio chamou em seu socorro, tendo sido decisivos para derrotar as milícias treinadas, armadas e conduzidas pelos EUA. 

Perderam o controlo sobre o Iraque, onde o Irão ganhou preponderância, e tiveram de abandonar o Afeganistão, onde foram derrotados pelos Talibãs.

Deu-se entretanto um reforço considerável do Eixo da Resistência, constituído por forças patrióticas do Líbano, da Palestina, do Iémen e do Iraque, forças estas com forte apoio popular (contra o labéu de terroristas que o Ocidente lhes põe) e que procuram coordenar-se entre si no combate a Israel e aos EUA.

O Irão, que fez largos progressos sociais, económicos e tecnológicos desde a revolução de 1979, reforçou a sua influência política na região, não apenas por si próprio, mas também pela estreita ligação que mantém com a China e a Federação Russa.

Sob o impulso da China, o Irão e a Arábia Saudita restabeleceram laços diplomáticos que colocam os sauditas (tradicionalmente vistos como serventuários dos EUA) numa posição mais distante dos propósitos coloniais de norte-americanos e europeus.

As boas relações entre a Rússia e a OPEP (que reúne os principais países exportadores de petróleo e os que detêm as maiores reservas) têm-lhes permitido ditar regras sobre o volume e o preço do petróleo nos mercados mundiais, contra as pretensões dos EUA. 

Os BRICS têm exercido forte poder de atracção sobre países da região, incluindo alguns dos que eram tradicionalmente aliados dos EUA e da Europa.

Há dias, de novo sob patrocínio chinês, as diversas facções da resistência palestina firmaram um acordo de unidade que frustra os esforços de Israel para manter divididas as correntes políticas que lutam por um Estado Palestino.

Considerando este panorama de sucessivos revezes, pode dizer-se que Israel, mais do que nunca, é um instrumento decisivo para que os EUA (e as forças imperialistas em geral) possam alimentar a ambição de recuperar parte do terreno perdido. Tudo indica que acordaram tarde, mas isso reforça neles a ideia de que terão de agir por todos os meios e sem olhar a regras. É aqui que Israel e os sionistas têm o seu papel nas condições actuais.

Netanyahu sabe disto. A sua habilidade política consiste em ter percebido que tinha chegado a hora dos chacais e em assumir esse papel sem rebuço. Por isso mesmo, percebe que pode levar ao extremo todas as aventuras que, em condições “normais”, constituiriam limites a não transpor: genocídio comprovado à luz do dia, limpeza étnica assumida de viva voz, continuados crimes de guerra e contra a humanidade, assassinatos selectivos, desrespeito de todas as resoluções condenatórias emitidas pelas instâncias internacionais.

Israel tem a certeza, confirmada ao longo dos anos, de que o apoio norte-americano não lhe faltará em nenhum plano – diplomático, político, financeiro, militar – pela razão simples de que o sionismo israelita é uma criação do imperialismo para uso em interesse próprio. Se há anos atrás, quando os EUA pareciam dominar sem oposição a cena internacional, Israel era imprescindível para a política expansionista norte-americana, hoje, quando a sua decadência se manifesta um pouco por todo o lado, o papel de Israel tornou-se vital para os EUA. A ideia de que os EUA vão atrás de Netanyahu sem poderem travar o seu extremismo, é uma ilusão de óptica que inverte os papeis do mandante e do mandado.

A prova mais recente do apoio indefectível do imperialismo a Israel, e concretamente a Netanyahu, foi dada pelo Congresso dos EUA ao aplaudir de pé, por 49 vezes!, o discurso de matriz nazi do primeiro-ministro israelita. Os Democratas que faltaram ao show tentaram com isso apenas atirar para cima dos Republicanos a repugnância da opinião pública perante o morticínio que corre na Palestina. Mas a sua candidata às eleições encarregou-se de colocar as coisas no devido pé ao reafirmar a política de sempre dos EUA a respeito de Israel: apoio incondicional.

Como bem notava a jornalista australiana Caitlin Johnstone em comentário recente, “Uma das coisas mais idiotas da política dos EUA de hoje é o modo como ambos os partidos [Republicano e Democrata] constantemente se atacam (…) para criar a ilusão de que têm grandes divergências em política externa”.


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 5/8/2024, 9:34

Penso que ninguém poderá dizer que, politicamente, não existem divergências entre DEMOCRATAS e REPUBLICANOS dos USA, tal como há divergências na direcção do BENFICA.
Mas a questão não é essa. A questão hoje dominante da POLÍTICA ESTADUNIDENSE é como "reger para conservar" seu PODER IMPERIALISTA que está presente em cada poro da SOCIEDADE USA. E com a perda desse PODER os USA sofrem um enorme trambolhão. Quanto a isso, quer TRUMP quer KAMALA estão inevitavelmente de "braço dado".
A jornalista australiana Caitlin Johnstone tem assim carradas de razão: na "hora da verdade", as "diferenças" aparentes somem-se e chega a altura de dizer: o REI VAI NÚ! Que é como quem diz: é o Petróleo estúpido!


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar