“Credibilizar” a União Europeia, pretende o BE

Urbano de Campos — 26 Julho 2024

Deputada do BE integrou delegação da AR em visita oficial à Ucrânia, 2 e 3 de maio 2023

Em declarações recentes à TSF, a deputada europeia do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, manifestou-se contra aquilo a que chamou os “dois pesos e duas medidas” da União Europeia acerca das guerras na Ucrânia e em Gaza, e defendeu que a “União Europeia deve credibilizar-se internacionalmente”. Entenda-se: o peso e a medida “errados” a que Catarina Martins se refere respeita ao morticínio em Gaza, no qual a UE tem sido parte activa dedicando-lhe apenas vagas condenações morais. 

Quanto à Ucrânia, a eurodeputada acha que a UE está na posição justa, como se depreende da colaboração que o BE tem prestado à campanha de condenação da Rússia e de apoio irrestrito ao regime de Kiev. “Temos (sic) uma posição forte e consensual sobre a Ucrânia”, sublinhou a eurodeputada referindo-se à UE.

Não ocorreu a CM interrogar-se por que razão haveria a UE de ter dois pesos e duas medidas a respeito daqueles conflitos; e se não será, ao invés, o BE que tem uma posição dúplice sobre o assunto.

O BE vê nas guerras da Palestina e da Ucrânia lutas marcadas por desígnios de independência nacional, e acha assim que a sua posição é coerente: apoia em ambos os casos as forças que, na sua óptica, se defendem dos agressores. Simples. Só que, num caso, está do lado de um povo oprimido por um poder instalado pelo imperialismo; e, no outro, está do lado de um poder instalado pelo imperialismo contra populações oprimidas.

Ver no caso dos palestinos a ambição de conquistar a independência como nação é coisa  internacionalmente consagrada que se mete pelos olhos dentro. A Palestina luta há décadas contra o colonialismo e o apartheid sionista que os imperialismos britânico e norte-americano promoveram e municiam e que a UE apadrinha. O direito a um Estado Palestino é lei das Nações Unidas. Israel opõe-se-lhe com armas e apoio político fornecidos pelos EUA e a UE. O genocídio dos palestinos está em curso à vista de todos, e os planos de limpeza étnica são anunciados à boca cheia pelos dirigentes israelitas. O aplauso que o Congresso dos EUA deu há dias ao criminoso Netanyahu confirma a aliança de ferro entre Washington e Telavive. Digamos que é um caso em que não há que enganar.

O mesmo não se pode dizer da Ucrânia. A Ucrânia foi usada pelos EUA e a UE, desde a sua independência em 1991, como ponta de lança contra a Rússia. Muitos anos antes da invasão russa, as repúblicas do Leste, de população russa e russófona, declararam que não aceitavam o poder fascista imposto em Kiev pelas potências ocidentais e reclamaram o direito de autonomia. O regime de Poroshenko e de Zelensky, com o pleno apoio da NATO, iniciou uma guerra civil contra as ambições autonomistas das populações do leste do país. É no quadro dessa guerra civil de oito anos (2014-2022) que a invasão russa tem de ser vista.

Invocar o direito da Ucrânia (concretamente a Ucrânia candidata à NATO, dirigida por Zelensky, agente de Boris Johnson e de Biden) à “autodeterminação” – como insistiu CM, na linha do que o BE tem argumentado em resposta aos críticos que discordam da posição dominante no partido – é mistificar o assunto. A questão de autodeterminação nacional que neste caso se coloca não é relativa à Ucrânia de Zelensky; é, sim, relativa às repúblicas do Leste, que não aceitaram o golpe de estado de 2014 e as suas decorrências, por razões políticas e de segurança bem precisas, reclamação que o poder de Kiev se nega a reconhecer.

Equiparar, com o argumento da autodeterminação, a luta em Gaza e na Cisjordânia contra os torcionários israelitas à guerra comandada pela NATO na Ucrânia roça o insulto à resistência palestina. 

Não é a UE que tem dois pesos e duas medidas. Em ambos os casos, a UE está do lado das forças imperialistas que manobram nos bastidores e às claras, ou seja, o imperialismo norte-americano, através de Zelensky num caso, através de Netanyahu noutro caso. A UE é, pois, coerente, tirando os trejeitos “humanitários” que vai afectando diante da barbárie de Gaza. 

Quem não é coerente é o BE, que num caso condena o apoio a Israel em nome do direito de independência dos palestinos, e noutro caso alinha com a NATO e a UE a pretexto de uma questão de autodeterminação nacional que se coloca, sim, em relação às repúblicas do leste da Ucrânia, mas não em relação ao regime de Kiev.

 


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 26/7/2024, 21:52

Esta postura de dois pesos, duas medidas decorre do abandono de uma visão revolucionária e classista da situação geoestratégica pelo BE.
O campo imperialista, como bem aponta o artigo, esse não se engana: o inimigo dele são os povos que pretendem auto-governar-se.

leonel l. clérigo 27/7/2024, 20:14

No Comentário de MANUEL BATISTA (MB) surge lá uma questão raramente referida: o campo imperialista não se engana no seu inimigo que são os povos que pretendem auto-governar-se.
E na eleição que se avizinha para a presidência dos USA, julgo ser esta questão uma questão central.

1 - O Imperialismo é coisa velha de milhares de anos, mas tudo o indica que continua ainda "fresco que nem uma alface".
Cecil Rhodes, um velho imperialista inglês do sec. XIX, aconselhou de viva voz os USA a transformarem-se em IMPERIALISTAS caso quisessem resolver os problemas com que se debatiam na altura. E pelos vistos os USA aceitou a "sugestão".

2 - Não é difícil encontrar na História como os IMPERIALISMOS se sucederam e prosperaram, tomando os lugares uns dos outros. Mas já é mais difícil encontrar quem os descreva e decifre bem ou seja: qual tem sido sua FUNÇÃO Histórica.
Duma maneira geral tem sido uma FORMA de um lugar, cidade ou região conquistar pelas armas e para si, um vasto território que fica assim sobre seu domínio. A partir daí, começa o essencial: a "rapinagem" dos "Recursos" e "Riquezas" criadas nesse vasto território "PERIFÉRICO" conquistado, que irão ser canalizadas para o "CENTRO" imperial que se "DESENVOLVE" e dá geralmente o nome ao IMPÉRIO.

3 - Poder-se-á dizer - e diz-se... - que o Mundo ganhou e a Civilização Humana avançou com o IMPERIALISMO antigo. E até podemos, talvez, dar isso de barato para evitar uma discussão interminável cujo resultado, salvo melhor opinião, parece não não nos levar muito longe.
Mas ao surgir a REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - ao levar-se a CIÊNCIA à PRODUÇÃO - a coisa mudou de figura. A CAPACIDADE PRODUTIVA que esta REVOLUÇÃO trouxe às SOCIEDADES vem-nos mostrando como a mais recente "Forma" IMPERIALISTA/CAPITALISTA se vem tornando cada vez mais OBSOLETA e criadora de desgraças sem fim à vista. A imensa capacidade produtiva que hoje já se dispõe, já dá para todos viverem razoavelmente.
É de uma nova ORGANIZAÇÃO SOCIAL que o Mundo necessita: o velho CAPITALISMO já "deu o bafo", já não é solução para ninguém por mais que a IL se esfole em mostrar o contrário. É mais um "modo de morte" que um "MODO de VIDA".

4 - Por tudo isto, julgo ser muito curioso que a chegada das Eleições USA - o CENTRO IMPERIALISTA do nosso tempo - não atraia ao DEBATE o IMPERIALISMO, seu Estado actual e seu futuro. Mas mais preocupante ainda é a resistência que largos sectores fazem a isso, transformando-o num mero "jogo de futebol": TRUMP contra KAMALA. E sem mais.

leonel l. clérigo 31/7/2024, 10:43

O que está acontecendo na VENEZUELA é um ponto a favor do que disse acima Manual Baptista: "O campo imperialista... esse não se engana: o inimigo dele são os povos que pretendem auto-governar-se". MB acertou em cheio.
Os USA não suportam que lhe "toquem" no QUINTAL da América Latina: depois do "desembarque em Cuba" e do golpe de estado Pinochet que abriu as portas à "rapaziada de Chicago" neoliberal, não restam dúvidas.
De facto, é isso um ponto decisivo para a "estabilidade" do IMPÉRIO USA. E não só: para a "estabilidade" de todo o seu "exército civil" Subdesenvolvido que vai vivendo das "MIGALHAS do IMPÉRIO" democrático: como a famosa "CLASSE MÉDIA" (que, aqui para nós, ninguém se atreve a defini-la "claramente").

PS: Disse-me recentemente alguém que uma das suas "ambições" era ser COMENTADOR "Geo-estratega" da COMUNICAÇÃO SOCIAL em Portugal ou, em alternativa, "feiticeiro de sondagens". E isso porque se pode dizer as ASNEIRAS que se quiser sem consequências "imediatas" ou remotas.
Contudo e para ele, a coisa tinha um senão: era preciso fazer primeiro "prova de vida" ou seja, jurar a "pés juntos" que sempre defenderia os INTERESSES BURGUESES CAPITALISTAS incluindo-se aí a defesa do DECADENTE IMPÉRIO OCIDENTAL.
Uma questão de sobrevivência...

MANUEL BAPTISTA 31/7/2024, 15:11

Gosto do humor de Leonel Clérigo.
Creio poder dar uma achega à questão do imperialismo. Evidentemente sempre houve impérios, desde o aparecimento de civilizações urbanas, baseadas numa centralização dos recursos agrícolas, principalmente. Mas, o imperialismo sofreu mutações notáveis. Na Roma imperial, por exemplo, as expedições tinham como finalidade, não apenas destruir inimigos, como obter um botim, o que incluía os escravos. A sociedade esclavagista era alimentada pelos escravos capturados nas guerras.
Na época das expansões ultramarinas portuguesas, a conquista de territórios no Oriente não era o ponto essencial (quer para portugueses quer par outras potências coloniais europeias): No Oriente, o que interessa aos invasores cristãos é o domínio do comércio. O subjugar de reis e sultões, era o meio pelo qual os cristianíssimos colonizadores esperavam obter exclusividade de mercadorias e das rotas respetivas.
No século XIX, com a revolução industrial, o mercado capitalista precisava de matérias primas, em abundância e com regularidade: por exemplo o algodão. A causa do alinhamento de certos Estados europeus com o Sul na guerra de secessão dos EUA foi para garantir o abastecimento das fiações em algodão. Etc, etc
Hoje em dia, «o tardo capitalismo» precisa do controlo de vastas áreas não para comércio, não para matérias-primas, não para escoamento de produtos, mas simplesmente para que não se crie um agrupamento de povos, nações, regiões que escape ao controlo, à dominação dos EUA.
Por isso, os BRICS, não sendo compostos por nações revolucionárias, longe disso, são uma ameaça direta para o super-imperialismo ou seja, para o mundo unipolar. Isto explica a razão profunda da agressividade em relação à China, à Rússia e ao Irão, pois são os mais importantes na montagem de sistemas de trocas internacionais não dependentes do dólar, portanto do mundo financeiro ocidental e do imperialismo dos EUA.

leonel l. clérigo 31/7/2024, 18:15

Caro Manuel Baptista: Gostei!
Uma das questões que considero ser sempre de "levar a sério" é o combate às ALDRABICES de que a nossa História - e outras Histórias... - ainda é fértil. Por isso, considero acertado o que diz o Brasileiro Paulinho da Viola na sua "Dança da Solidão": "...quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado."
Há que não perdoar ao nosso dito "católico" burguês - hoje um serventuário do Imperialismo OCIDENTAL - que é capaz de "encher a boca" com a "boa acção" do Pª. António Vieira, mas só a usa quando lhe convém.
É de facto um verdadeiro "Pragmático": quando antevê "bons resultados práticos", usa-o. Caso contrário, esconde-o "debaixo do tapete". E na época de CRISE que atravessamos HOJE muita coisa está a ser enviada para "debaixo do tapete". Mau sinal!

Adilia Mesquita Maia 1/8/2024, 23:27

Ignorância, défice intelectual, ou má fé? Eis a questão!

O Bloco de Esquerda, ao defender a Palestina e ao atacar a Rússia, não percebe que:
“ num caso, está do lado de um povo oprimido por um poder instalado pelo imperialismo; e, no outro, está do lado de um poder instalado pelo imperialismo contra populações oprimidas.”

Quer dizer, o Bloco, pela voz de suas dirigentes, percebe diferença onde há similitude e esta reside no facto de nos dois casos haver um poder instalado que é o mesmo e que é o opressor e, portanto ,por uma questão de lógica devia assumir idêntica postura nos dois casos, de outra maneira incorre em contradição.

Esta atitude do Bloco de Esquerda deixa-me perplexa:
Será que as dirigentes não percebem que se estão a colocar numa ‘saia justa’?
Será que deveriam voltar à Escola para aprenderem argumentação e lógica formal, além de umas pitadas de História?
Será que líderes que as antecederam, com sólida formação em história e em filosofia política, estão solidários com esta posição?

Uma coisa é certa: Com uma Esquerda destas não precisamos de Direita


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