A União Europeia ainda existe?
Manuel Raposo — 19 Junho 2024
As forças políticas que têm dominado as instituições da União Europeia deram-se por muito satisfeitas por terem conseguido manter a maioria no parlamento nas recentes eleições de 6 a 9 de junho. Mas não podem mascarar o rebuliço político resultante do crescimento, em países fulcrais como a França ou a Alemanha, de partidos que se opõem à linha seguida por Bruxelas, nomeadamente no que respeita à condução da guerra na Ucrânia e à subordinação da UE aos ditames dos EUA.
Tudo indica que se entrou num período de viragem política com consequências profundas. Recuar às origens da União Europeia, lembrar os conflitos por que tem passado, poderá ser útil para avaliar a dimensão da mudança. Tanto mais quanto tal mudança não se resume à Europa, mas resulta de uma transformação que se está a dar no campo imperialista e nas suas relações com o resto do mundo.
Na origem, a reconstrução necessária
A União Europeia viveu sempre – desde os seus primeiros dias, nos anos imediatos à segunda guerra mundial – numa contradição que tendeu a dilacerá-la.
Por um lado, a reconstrução económica de um território destruído pela guerra impunha-se a todos os países sem excepção como uma necessidade absoluta e de primeira urgência. A constituição de uma primeira Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Bélgica, Alemanha, França, Itália, Luxemburgo e Holanda, 1951) correspondia a esse esforço.
Ao mesmo tempo, e a par da recuperação económica, a constituição da Europa como um bloco político era imprescindível ao Ocidente imperialista, já então capitaneado pelos EUA, para fazer frente aos desafios que a divisão do mundo em dois blocos iriam colocar.
A NATO – reunindo regimes democráticos e fascistas e inclusive recrutando quadros nazis, mas fazendo-se paladino do “mundo livre” – constituiu-se como o guardião militar desta recuperação europeia o que implicava ser a arma de combate à Europa de Leste e à URSS.
O desenvolvimento europeu, sob impulso do capital norte-americano (saído reforçado da guerra), seria um escudo contra as veleidades socialistas e revolucionárias que pudessem fazer curso na Europa e um importante braço dos EUA na sua busca de hegemonia no campo imperialista.
Nos vinte anos seguintes à guerra, com efeito, o novo imperialismo que ganhava forma sob batuta norte-americana iria ter de enfrentar a vitória da revolução chinesa, as guerras da Coreia e da Indochina, as revoluções cubana e argelina, as lutas de independência das colónias africanas e asiáticas. O desenvolvimento económico impetuoso e a coesão política e militar conseguidos pelo capitalismo ocidental foram a base da constituição do bloco imperialista formado pelos EUA, pela Europa Ocidental e pelo Japão.
A ambição imperialista da Europa
Por outro lado, no entanto, o reerguer do capitalismo europeu, a coesão política que se forjava entre os principais dos seus países, encerravam uma ameaça para a hegemonia norte-americana. O natural expansionismo do grande capital europeu, que se procurava consolidar nas diferentes etapas percorridas pela UE, desafiava o domínio norte-americano, na medida em que o “projecto europeu” tendia a gerar um imperialismo concorrente dos EUA.
Quando, nos anos 60, o presidente de Gaulle retirou a França do comando unificado da NATO (dominada em absoluto pelos EUA) e falou de uma Europa do Atlântico aos Urais; e quando o chanceler Willy Brandt, na então Alemanha Federal, lançou a Nova Política a Leste (Neue Ostpolitik) ficou claro que as duas principais potências da então CEE encaravam a relação com os EUA não apenas em termos de colaboração, mas também, quanto possível, em termos de autonomia política e de competição.
Ambos viam a Europa de Leste e a URSS, mesmo em plena guerra-fria, como territórios situados na esfera de influência da Europa, para os quais a CEE poderia desenvolver políticas próprias – não apenas no plano diplomático, mas sobretudo económico e político.
A continuidade geográfica entre a Europa e o território russo jogava a favor desta ambição, dando como “natural” a tentativa do capital europeu de beneficiar dos imensos recursos (industriais, agrícolas, minerais, energéticos) que se estendiam desde a “cortina de ferro” ao Extremo Oriente.
Os EUA contra a Europa
Os EUA sempre trataram de combater por todos os meios as ambições próprias das potências europeias. As suas principais armas foram, e continuam a ser, de natureza económica, tecnológica e militar. À medida, porém, que o poderio económico dos EUA decaía e que as vantagens tecnológicas deparavam com concorrentes à altura, o domínio militar ganhava preponderância, tornando-se o meio principal não só para enfrentar os inimigos, mas também para manter coeso, sob sua alçada, o campo imperialista. Os últimos 30 anos demonstram-no.
A aventura do imperialismo alemão nos Balcãs em 1991 (acolitado pela Áustria e pelo Vaticano) no sentido de fragmentar a Jugoslávia, teve como resultado a entrada em força dos EUA e da NATO na região para derrotar a resistência da Sérvia e mostrar quem manda nestas coisas da geopolítica. A maior base militar norte-americana fora dos EUA foi constituída por essa via no Kosovo e uma outra, da NATO, instalada na Albânia. As ambições imperiais alemãs, impulsionadas pelo processo de reunificação, tiveram de contentar-se com as estâncias de férias nas costas do Adriático.
Com as duas Guerras do Golfo (1991 e 2003) os EUA afrontaram directamente o chamado eixo franco-alemão. Tomando conta do petróleo do Médio Oriente, pretendiam condicionar o crescimento económico e sujeitar politicamente todo o mundo – mas também a Europa, o Japão e demais “amigos”. Uma última resistência da Europa foi então protagonizada pelo presidente francês Chirac e pelo chanceler alemão Schröder que se opuseram à invasão do Iraque, sem a conseguir travar. França e Alemanha resignaram-se, que remédio, à preponderância dos EUA.
A machadada definitiva na “autonomia estratégica” europeia – económica, política ou militar – foi dada recentemente, já com a guerra na Ucrânia em curso. Primeiro, foi a chantagem para a imposição de sanções à Rússia, o que significou afundar a economia europeia numa crise sem precedentes e sem fim à vista. Depois, foi o golpe de misericórdia na economia alemã com a destruição pelos serviços secretos norte-americanos do gasoduto Nord Stream 2 sem que os dirigentes alemães ousassem piar.
Finalmente, depois de porem em pleno andamento a guerra na Ucrânia, os EUA tratam de empurrar para a Europa e para a UE os custos humanos e materiais dela decorrentes, degradando as condições de vida das populações europeias e conduzindo à liquidação do Estado Social europeu. Por via da guerra – seja no plano militar, político ou económico – os EUA transformaram a Europa num vassalo, em grau que nunca antes tinha sido conseguido.
Um passo mais esboça-se nos dias que correm com as pressões dos EUA para que a Europa siga os interesses norte-americanos no seu afrontamento com a China e corte laços económicos com Pequim.
O fim da contradição original
À vista dos sinais dados pelas últimas décadas, a contradição que marcou o nascimento e o crescimento da unidade europeia tende pois a ser resolvida pela submissão absoluta do capitalismo europeu ao capitalismo norte-americano. As ambições do (sub) imperialismo europeu perdem assim base para se afirmarem. A Europa e a UE são reduzidas à condição de peças do imperialismo norte-americano.
Mesmo se os conflitos de interesses entre o capitalismo europeu e norte-americano não desaparecem, a sua manifestação política – que se tem traduzido na tentativa de criar um bloco europeu com identidade própria – é esmagada pelo amarramento da Europa e da UE aos estritos interesses hegemónicos dos EUA.
Novas contradições, novos conflitos
Os poderes até agora instalados na generalidade dos países europeus têm na sua maioria seguido como carneiros por este trilho, particularmente desde o início da guerra na Ucrânia. As instâncias dirigentes da UE, por seu lado, são hoje mandatárias da política definida em Washington. A desconsideração a que são votadas pelas populações dos países membros mede-se pela maciça abstenção sistematicamente verificada nas eleições para o parlamento europeu (50% nas deste ano).
Não é sem conflitos e dissensões que este caminho se tem feito. A UE, nomeadamente, tem sofrido abalos sucessivos mal mascarados pela aparente unidade exibida pelas suas instituições. Nacionalistas na forma, estes movimentos centrífugos dão sinal da desagregação interna do campo imperialista constituído na segunda metade do século XX.
UE, uma casca vazia
Cabe portanto perguntar se o propósito que, do lado europeu, alimentou a criação da União nas suas diversas etapas ainda tem pés para andar. A elite dirigente da UE faz tudo para parecer que sim, mas a realidade mostra que as divisões entre países membros se acentuam à medida que se agravam os conflitos de interesses causados pela perda de autonomia do capital europeu.
É no patente domínio absoluto dos EUA, nas suas imposições ditatoriais – não apenas resultantes da guerra na Ucrânia, mas decorrentes do esforço para manter a hegemonia sobre todo o mundo – que em última análise tem de ser procurada a razão das divisões crescentes entre os países europeus que dilaceram e ameaçam partir a UE. A UE, em larga medida, já hoje é uma casca vazia. Os sinais são vários.
Adeus prosperidade, adeus paz
Desde logo, é evidente o descalabro económico e político causado pela guerra. As promessas de prosperidade e de paz eterna que alimentaram o “projecto europeu”, irremediavelmente comprometidas, transformaram-se no seu contrário: apelo ao sacrifício material e mentalização para a guerra.
Mesmo não havendo, por enquanto, uma opinião pública disposta a bater-se pelo fim do conflito, a pioria visível das condições de vida, o receio de alastramento da guerra, a pressão para o aumento das despesas militares, a ameaça às políticas sociais europeias que tudo isto encerra alarmam as populações.
Estes têm sido motivos suficientes para que governos como o da Hungria ou da Eslováquia (membros da UE) ou da Sérvia (candidata à UE) tenham levantado fortes obstáculos às determinações da NATO e da subserviente camarilha dirigente de Bruxelas. Independentemente da cor política de cada um, o que marca a posição destes governos é a tentativa de assumir uma posição soberana face a uma UE enfeudada aos EUA e alheia aos interesses das populações europeias.
Renasce o nacionalismo
Não admira que, de forma mais geral, o nacionalismo (no sentido imediato de reforço de soberania para defesa de interesses nacionais) renasça e ganhe apoio em vários países. Com isto, é o sonho de uma federação europeia, alimentado pelas maiores potências, que cai por terra. Os resultados das recentes eleições para o parlamento europeu mostram um crescimento acentuado daquelas correntes, não apenas em países de segunda linha, mas em potências centrais como a França, a Alemanha, a Itália ou a Holanda.
Não é apenas o nacionalismo de direita (“populista”, como os barões da UE gostam de dizer, como se fosse crime defender interesses populares!) que encarna essa resistência. O exemplo, embora solitário, da Eslováquia e da Sérvia mostra que o mesmo comportamento pode vir a ser personificado por outras forças políticas.
O “eixo” quebrado
Mas não apenas o nacionalismo divide a UE. A própria acção directa dos EUA e mesmo das cúpulas da UE se volta contra a pretendida coesão da União. A constituição, em 2016, da Iniciativa dos Três Mares (Báltico, Adriático, Negro), reunindo doze países situados na frente leste da Europa, desde logo se tornou uma arma dos EUA no afrontamento da Rússia – longe dos propósitos anunciados de criação de uma mera “cooperação em questões económicas”.
Os três países bálticos, a Polónia e a Chéquia, por exemplo, têm sistematicamente tomado posições ultramontanas a respeito da guerra, constituindo pontas de lança da NATO quando é necessário espicaçar outros membros da UE no apoio à Ucrânia, como sucedeu em dada altura com a Alemanha.
A cautela que até certo momento se pôde ver na posição francesa ou alemã a respeito da guerra (por exemplo, nas restrições ao fornecimento de armas) foi gradualmente derrotada pelos falcões da NATO e por forças internas dos próprios países.
O chamado eixo franco-alemão, apontado como o motor da UE – quer no plano económico, quer no plano da sua definição política – simplesmente já não existe, e o que se vê hoje é uma rasteira disputa entre Macron e Scholz para ganhar os favores dos EUA como seus representantes na Europa.
A batalha vital do imperialismo
O imperialismo norte-americano trava a sua batalha vital contra a China e a Rússia. Defronta cada vez mais a desconfiança e a oposição dos países do mundo dependente. Não pode dar-se ao luxo de ter aliados inseguros ou que ambicionem seguir uma política movida por interesses próprios; precisa de os ter ferreamente amarrados para os colocar ao serviço do único desígnio que o norteia: travar a queda da sua hegemonia sobre o mundo.
Neste sentido, estamos a assistir ao processo que levará ao fim do imperialismo formado no pós-guerra tal como o conhecemos até agora.
A submissão de todos os, até aqui, aliados é condição para isso. “Que se foda a UE”, disse Victoria Nuland em 2014 quando comandava o golpe de estado em Kiev. Biden disse praticamente o mesmo quando anunciou publicamente, diante de um chanceler alemão aparvalhado, o fim próximo do North Stream 2.
Tal submissão, de sentido estratégico, dá-se em todos os campos – económico, político, militar, diplomático – assumindo os contornos de uma ditadura voluntariamente aceite pelos ditos “aliados”. Esta ditadura norte-americana sobre o campo imperialista leva ao inevitável esvaziamento (possivelmente à desagregação) da UE como potência económica e como entidade política.
O fim de uma época
O enfeudamento do capitalismo europeu ao imperialismo norte-americano (algo semelhante se passa a respeito do Japão) tem consequências notáveis.
a) Aquilo a que se tem chamado a Tríade Imperialista (EUA-UE-Japão) tende a tornar-se um bloco imperialista com uma única cabeça e com uma única estratégia: garantir a sobrevivência da hegemonia norte-americana de que a Europa e o Japão, sem campo para se afirmarem por si próprios, se tornam inteiramente dependentes.
b) Uma certa divisão de tarefas e uma certa divisão de espaços de influência que existiu até recentemente entre os três pólos da Tríade tende a apagar-se em favor de um domínio exclusivo dos EUA. No entanto, o declínio económico e o crescente descrédito político não conferem aos EUA nem tempo nem capacidade para assumir tamanha missão. Os riscos de guerra generalizada crescem na medida em que o imperialismo norte-americano, confiado no seu potencial militar, possa tentar correr contra o tempo numa fuga para a frente.
c) O corte de relações comerciais com a Rússia, nomeadamente a perda das suas fontes de energia barata, sujeita a Europa à condição de cliente obrigatório dos EUA a preços muito mais elevados. No imediato, isto representa um óptimo negócio para as companhias norte-americanas, mas, a prazo, quer dizer que o capitalismo ocidental, todo ele, vai ficando privado de recursos do resto do mundo, muito mais abundantes e baratos – na rapina dos quais, lembremos, se baseia a sua condição de capitalismo imperialista. Se a isto se juntar a demarcação comercial com a China, como pretendem os EUA, e ainda a resistência de países dependentes a cederem os seus recursos como até aqui, será certo que a saúde económica do imperialismo irá de mal a pior.
d) Ao submeterem a UE e a Europa, os EUA ganham um vassalo obediente, mas deixam de ter um aliado com vontade e capacidades próprias. O mesmo se pode dizer a respeito do Japão. Em certo sentido, o imperialismo corta o ramo em que tem estado sentado desde há 80 anos.
e) Perde sentido a ideia de que relações privilegiadas do chamado Terceiro Mundo com a UE poderiam ser alternativa ao domínio dos EUA, o que torna os países dependentes menos propensos a miragens de “neutralidade” nas relações internacionais. Estreita-se o campo para não-alinhados, tende-se para a divisão do mundo em dois blocos antagónicos.
f) O resto do mundo procura organizar-se por si, fora da órbita imperialista, em função de interesses nacionais ou regionais (BRICS, Organização para a Cooperação de Xangai, associações de âmbito regional) buscando apoio em potências como a China e a Rússia. Este caminho tornou-se possível pelo desenvolvimento industrial ocorrido em muitos dos países ditos subdesenvolvidos, que assim puderam dar passos para sair do atraso ancestral em que foram mantidos pelo colonialismo e pelo imperialismo. A globalização capitalista, impulsionada pelo Ocidente imperialista com o final da guerra-fria, gerou no resto do mundo condições materiais que agora põem em causa o domínio imperialista.
g) A contradição maior do mundo de hoje, entre o imperialismo e os povos dependentes, ganha uma dimensão nunca antes atingida.
Novos desafios para a esquerda
À esquerda anticapitalista depara-se uma situação com novos contornos que ainda há dois-três anos não se colocava.
Neste momento, na Europa, a oposição às forças no poder é encabeçada pela direita e pela extrema-direita. O nacionalismo que arvoram, no entanto, mostra a estreiteza dos seus propósitos políticos, uma vez que os problemas que se colocam – resultantes das transformações que se dão na própria orgânica do imperialismo, no crescente papel dos países dependentes e na divisão do mundo em dois – não têm solução no âmbito nacional de cada país.
O êxito da extrema-direita decorre, portanto, de encontrar campo aberto para a sua demagogia nacionalista. Para isto contribui o facto de a esquerda institucional ter desertado da luta anti-imperialista, e de a esquerda anticapitalista não ter nem programa coerente nem presença política para assumir a liderança de um movimento popular, necessariamente inter-nacional, que tome a tarefa em mãos.
A nova realidade aponta para a necessidade de identificar sem reticências o imperialismo norte-americano como o inimigo a combater; de apoiar os povos de todo o mundo sem excepção na sua luta de rejeição do imperialismo; de encarar a UE como um serventuário sem vontade própria destinado a sucumbir sob o mando dos EUA; de combater a ilusão estúpida de querer “reformar”, “renovar” ou “democratizar” uma UE que o próprio interessado, o grande capital monopolista, já não mostra ter meios ou vontade para defender.
Reerguer a luta popular anticapitalista e anti-imperialista é condição para não dar livre trânsito às forças fascistas, de direita ou burguesas nacionalistas na resistência contra os desmandos de um imperialismo em fim de vida.
Comentários dos leitores
•Manuel Baptista 20/6/2024, 6:03
Muito bom texto, vou divulgá-lo!
Quanto ao parágrafo final, unir os setores populares (operários, pequena burguesia...) para levar a cabo uma luta séria contra as forças capitalistas e imperialistas, sim. Tanto mais que a capitulação da esquerda dita anticapitalista e anti-imperialista durante demasiado tempo, indo atrás de ilusões reformistas de toda a espécie, é que deu oportunidade para o crescimento eleitoral de uma direita ou extrema-direita, que se apresentou (como de costume) sendo «antissistema», para melhor capitalizar o descontentamento das classes populares!
•AP 20/6/2024, 11:10
Gostei bastante do artigo e acho que esta discussão é muito importante.
Tenho alguns comentários:
"Neste momento, na Europa, a oposição às forças no poder é encabeçada pela direita e pela extrema-direita. O nacionalismo que arvoram, no entanto, mostra a estreiteza dos seus propósitos políticos, uma vez que os problemas que se colocam – resultantes das transformações que se dão na própria orgânica do imperialismo, no crescente papel dos países dependentes e na divisão do mundo em dois – não têm solução no âmbito nacional de cada país. "
Eu não concordo com esta afirmação. Não acho que a direita e extrema-direita na Europa sejam uma oposição às forças no poder: pelo contrário. Acho que são uma peça fundamental na consolidação do poder existente. Um Macron não existe sem uma Le Pen. Um Scholz não existe sem uma AFD. Uma von der Leyen não existe sem o espectro da extrema direita. O dito centro-direita (os partidos neoliberais do grupo parlamentar Europeu EPP: o European People's Party) subsiste na base da existência desta "ameaça" da direita: é o mal menor. O recente pacto de migrações é um exemplo dessa simbiose. O que foi aprovado é muito mais à direita e conservador do que alguma vez seria "aceitável" se não fosse a justificação da pressão dos partidos de "extrema"-direita.
Para além desta perspectiva, há uma outra que para mim é tão, ou mais importante. O Reino Unido, e o Brexit, são um exemplo fundamental. O Brexit foi benéfico para o Reino Unido? Não... Foi benéfico para quem? Para os EUA que com isso partiram a Europa e enredaram a Europa num problema que durou e ainda dura. Problema este que teve e está a ter impactos na economia Europeia e no equilíbrio de forças geopolítico. Dentro da Europa, o Reino Unido tinha alguns limites ao que poderia fazer e suporte quanto ao que poderia dizer não aos EUA. Actualmente, o Reino Unido mais não é do que uma marionete Americana. O Reino Unido está melhor? Não, está muito pior quer economicamente, quer politicamente, quer socialmente. Onde está o Éden prometido pelo Nigel Farage e o Boris Johnson? A milhas! Onde estão eles? Um está nos EUA a ajudar a campanha Republicana, o outro desapareceu.
Portanto, a minha ideia é que as próprias forças de "extrema"-direita, cujo objectivo é minar a Europa e dividir a Europa, são apoiadas e sustentadas pelos EUA com o objectivo concreto de reduzir o poder político da Europa. Não há um projecto "nacionalista" desta facções política. A roupagem nacionalista é apenas uma bandeira que acenam para ganharem votos. É como o "America first". O "America first" caíu por terra no primeiro dia e mostrou-se como realmente é: "Capital first".
Eu sou um sério apoiante do projecto Europeu. Acho que qualquer alternativa ao sistema vigente tem de passar pela internacionalização (como indicas no texto). Portanto, mais Europa em vez de menos Europa. Uma coisa que queria dizer é que é comum falar-se da "Europa", da "União Europeia" como uma entidade externa. "A Europa obriga a que se faça isto ou aquilo". Eu acho esta visão errada. A Europa são várias entidades. Entre elas:
- Parlamento Europeu
- Comissão Europeia
- Concelho Europeu
- Concelho da União Europeia
Cada um destes orgãos é composto por pessoa eleitas (directa ou indirectamente) pelos eleitores dos diversos países.
Parlamento Europeu a eleição é directa. A Comissão Europeia funciona como o Governo Português, é votado pelo Parlamento Europeu. O Concelho Europeu é constituído pelos chefes de Estado de cada país. O Concelho da União Europeia é semelhante mas, dependendo do assunto, ora é com base nos ministros das finanças, dos negócios estrangeiros, ou de outras pastas.
Portanto, a Europa não é uma entidade abstracta imposta de fora. Nem tão pouco é o que o Nigel Farage vendeu nos seus vídeos virais a criticar o van Rompoy (dizendo que este não era eleito). A Europa é o resultado das escolhas (ou falta de escolhas, veja-se os elevados números de abstenção) dos eleitores Europeus, quer indirectamente quando votam para os seus governos, quer directamente quando votam para o Parlamento Europeu.
Tal como em Portugal e noutros países, obviamente, votos no centro-esquerda e centro-direita (e "extrema"-direita) são votos nos interesses do capital. Mas isso não é nada de novo. A Europa, com maioria EPP (Partido Popular), é o que temos e o que temos tido nas últimas décadas: Europa neoliberal e subserviência aos EUA.
Eu acho incorrecto confundir a conjuntura existente com o projecto em si. Qualquer projecto de internacionalização, para mim, é um passo em frente e essencial. A Europa dividida por países é igual a um zero à esquerda do ponto de vista geopolítico. Portanto, a meu ver, o percurso passa por ter mais Europa e não menos Europa. Que Europa, isso depende do equilíbrio de forças. Tal como em cada país, não acho que seja diferente. Quanto mais alimentarmos a rixa entre países, mais alimentamos a hegemonia do capital que vive destas lutas internas entre os "pobrezinhos do sul" e os "ricos do norte". Como se o operário fabril da VW fosse fundamentalmente diferente do operário fabril da Martinfer. Ou como se o grupo Sonae fosse melhor que o grupo VW. Ou o Scholz fosse pior que o Montenegro. Como se não se sentassem todos à mesa e decidam, na Europa, o destino desta, e , consequentemente, de todos nós.
A Esquerda só sobrevive se se internacionalizar e isso passa, inevitavelmente, pela união de classes na Europa, mais Europa, uma Europa Federal, uma Europa Fiscal, uma Europa Orçamental. Uma classe já está unida, a outra continua a degladiar-se Norte-Sul, Este-Oeste.
"O êxito da extrema-direita decorre, portanto, de encontrar campo aberto para a sua demagogia nacionalista. Para isto contribui o facto de a esquerda institucional ter desertado da luta anti-imperialista, e de a esquerda anticapitalista não ter nem programa coerente nem presença política para assumir a liderança de um movimento popular, necessariamente inter-nacional, que tome a tarefa em mãos."
Concordo, principalmente com a segunda parte. A Esquerda não apresenta qualquer alternativa. As populações estão descontentes. A transferência de valor produzido do trabalho para o capital está em níveis record. Os Estados estão em dívida galopante. Os serviços públicos em declínio vertiginoso. Os impostos (totais) e receitas dos Estados em queda constante. Estamos a caminhar, não só para um declínio económico mas também para um cada vez maior empobrecimento das populações.
Perante isto, a Esquerda enterra a cabeça na areia, como a avestruz, e defende: abolição do Euro, menos Europa, soberania nacional, transição verde (abstracta).
Abstracções.
É preciso uma Esquerda que clarifique as causas destes problemas: Porque não há dinheiro agora? Para onde vai o dinheiro? Como transitar para uma economia verde? Como melhorar a vida das populações?
É preciso uma Esquerda que apresente propostas alternativas concretas, exequíveis no curto e médio prazo em vez de acenar com bandeiras que cada vez mais se tornam abstractas para quem tem de pagar as contas ao final do dia.
Um exemplo concreto:
Transição verde. Como fazer uma transição verde concreta e para todos? O que é preciso para que se transicione e se pague menos pela energia, por exemplo? São bombas de calor e paineis solares individuais? Ou são sistemas centralizados (por bairro, ou freguesia)? São centrais nucleares? Abolição do mercados liberalizados de energia? É preciso mostrar alternativas concretas, com números, irrebatível.
•mraposo 23/6/2024, 21:17
Caro AP
Aqui vão umas réplicas à tua crítica.
- O ponto central que procurei debater é se a UE está a fortalecer-se ou a fragmentar-se. Contra toda a propaganda oficial, acho que está liquidada como “projecto político”. Isto levanta uma questão: Que tarefas políticas devem assumir os trabalhadores e a esquerda anticapitalista diante de um plano burguês que se desagrega? Cabe-lhes fazer o papel que o grande capital já não pode ou não quer desempenhar?
- O que pode significar, como defendes, “mais Europa”? Nada, se abstrairmos da luta de classes. Uma coisa será a internacionalização resultante da acção política dos trabalhadores, outra (oposta) a que resulta da acção do capital. Uma tenderá a criar laços de igualdade entre povos e classes trabalhadoras, outra procura manter as desigualdades. Será sempre pelo combate à UE capitalista-imperialista que a internacionalização dos laços do Trabalho se poderá dar, não como produto automático do internacionalismo burguês. A evolução da UE em mais de 70 anos de vida fala por si: qual a igualdade, qual o internacionalismo, qual a “convergência”? Manter as desigualdades (primeiramente entre povos e trabalhadores, mas também entre países e capitais) é marca do imperialismo.
- As forças hoje instaladas no poder servem-se da extrema-direita e adoptam muitas das suas medidas? Certamente. Mas isso não quer dizer que não haja uma disputa pelo poder entre elas. A meu ver, a burguesia da UE ainda trava uma batalha para manter a estrutura e os figurantes do poder que construiu. O que a extrema-direita fará quando tomar conta do poder não se sabe ao certo. Seguramente, adaptar-se-á às circunstâncias ditadas pelo grande capital. Mas, neste momento, ver apenas o conluio (com sentido sobretudo conspirativo) e não ver a disputa é negar a realidade.
- O nacionalismo, nos países capitalistas desenvolvidos e numa época de decadência da burguesia, é uma bandeira esfarrapada, sem dúvida. Mas é com essa bandeira que as massas descontentes (trabalhadores e classes médias) estão a ser disputadas, sobretudo pela extrema-direita, contra a hegemonia do grande capital. A questão política que aqui se coloca, portanto, não é dizer simplesmente que se trata de uma manobra para ganhar votos, mas sim saber como pode a esquerda anticapitalista encabeçar a luta contra essas forças. Que “propostas concretas” há para o efeito?
- Falando de “propostas concretas”: não é por falta de propostas concretas, como as que exemplificas, que a esquerda está como está. Ao contrário, é justamente por ter abdicado de criar uma corrente ideológica e política anticapitalista, dirigida às massas trabalhadoras, e ter achado que era mais viável para o seu sucesso eleitoral e mediático dedicar-se a “propostas concretas” facilmente assimiláveis pelas classes médias - é por isso que a esquerda visível não representa nada no panorama político, a não ser fazer de apêndice crítico, institucional, do poder. O capital não precisa que lhe façam “propostas concretas” sobre como conduzir os negócios ou o governo, ele tem os seus especialistas que tratam disso. O que verdadeiramente lhe pode fazer mossa é uma oposição política de classe, isto é, assente na acção própria das classes trabalhadoras. Nessa condição sim, não faltarão propostas concretas que sejam capazes de determinar uma mudança de rumo em cada país e na Europa por junto.
Saudações
•A Viagem dos ArgonautasEspuma dos dias — União Europeia ainda existe? Por Manuel Raposo 20/7/2024, 23:15
[…] Publicado por em 19 de Junho 2024 (original aqui) […]
•A Viagem dos ArgonautasEspuma dos dias… — União Europeia ainda existe? Comentário e a réplica de Manuel Raposo 22/7/2024, 0:30
[…] Publicado por em 19 de Junho 2024 (original aqui) […]