Preto no branco, o plano sionista de expulsão dos palestinos

Editor / Yuval Abraham — 13 Novembro 2023

Rafah, sul de Gaza: palestinos nos escombros das suas casas depois de um ataque aéreo israelita, 29 outubro (Abed Rahim Khatib/Flash90)

Qual o projecto político de Israel para  Gaza, e para a Palestina em geral, além da intervenção militar? A resposta, preto no branco, vem de um grupo de reflexão sionista que divulgou em Telavive um detalhado projecto de expulsão dos palestinos de Gaza, com chancela de um ministério do governo de Israel, projecto para cuja concretização o bando de Netanyahu conta com o consentimento dos EUA, a anuência da UE e a tolerância dos regimes árabes “amigos”. O projecto, na prática, está em marcha no que respeita ao morticínio da população de Gaza.

 

EXPULSAR TODOS OS PALESTINOS DE GAZA, RECOMENDA MINISTÉRIO DO GOVERNO ISRAELITA

Yuval Abraham, 972 Magazine, 30 outubro 2023

O ministério da Informação [Intelligence, serviços secretos] de Israel recomenda a transferência forçada e permanente dos 2,2 milhões de palestinos residentes na Faixa de Gaza para a Península do Sinai, no Egipto. 

Em documento datado de 13 de outubro de 2023 [seis dias depois da operação militar do Hamas], o ministério avalia as opções de Israel sobre o futuro dos palestinos na Faixa de Gaza no contexto da actual guerra e recomenda uma transferência completa da população como a via de acção preferida. Apela igualmente a Israel para que mobilize a comunidade internacional para apoiar este esforço.

O ministério da Informação é liderado por Gila Gamliel, membro do partido Likud do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. 

Discussão a alto nível

O facto de um organismo ligado ao governo israelita ter preparado uma proposta tão detalhada, no meio de uma ofensiva militar em larga escala na Faixa de Gaza, reflecte como a ideia de transferência forçada da população [palestina] foi elevada ao nível da discussão política oficial.

Receios sobre tais planos – que equivaleriam a um grave crime de guerra à luz do direito internacional – cresceram nas últimas semanas, especialmente depois de o exército israelita ter ordenado que cerca de um milhão de palestinos evacuassem o norte da Faixa de Gaza na previsão de uma escalada de bombardeamentos e incursões terrestres graduais.

O documento recomenda que Israel actue no sentido de “evacuar a população civil para o Sinai” durante a guerra; estabelecer cidades-tenda e, mais tarde, cidades mais permanentes no norte do Sinai que absorvam a população expulsa; depois, terá de criar “uma zona estéril de vários quilómetros… dentro do Egito, e [impedir] o retorno da população a actividades/residências próximas da fronteira com Israel”.

Ao mesmo tempo, governos de todo o mundo, sob liderança dos Estados Unidos, devem ser mobilizados para implementar essa decisão.

“Deixar claro que não há esperança de voltar”

O documento recomenda de forma inequívoca e explícita a transferência de civis palestinos de Gaza como o resultado desejado da guerra. 

O plano de transferência é dividido em várias etapas. Como primeiro passo, devem ser tomadas medidas para que a população de Gaza “saia para o sul”, enquanto os ataques aéreos se concentram no norte da Faixa de Gaza. Na segunda etapa, começará uma incursão terrestre em Gaza, levando à ocupação de toda a Faixa de norte a sul e à “limpeza dos bunkers subterrâneos dos combatentes do Hamas”.

Paralelamente à reocupação de Gaza, os civis palestinos serão transferidos para o território egípcio e não poderão voltar. “É importante manter as estradas para o sul abertas para permitir a evacuação da população civil para Rafah”, diz o documento.

Para o efeito, o documento propõe promover uma campanha dirigida aos civis palestinos em Gaza que os “motive a aceitar este plano” e os leve a abandonar as suas terras. “As mensagens devem girar em torno da perda de terras, deixando claro que não há esperança de retorno aos territórios que Israel ocupará em breve, seja isso verdade ou não.”

A imagem deve ser a seguinte: ‘Alá fez com que vocês perdessem esta terra por causa da liderança do Hamas – não há escolha a não ser mudarem-se para outro lugar com a ajuda dos vossos irmãos muçulmanos’, diz o documento.

Por “necessidade humanitária”

O documento incentiva o governo a realizar uma campanha pública no mundo ocidental para promover o plano de transferência “de uma maneira que não difame Israel”.

Isso seria conseguido apresentando a expulsão da população de Gaza como uma necessidade humanitária, a fim de obter apoio internacional, argumentando que a realocação resultaria em “menos baixas entre a população civil em comparação com as perdas esperadas se a população permanecer”.

O documento também afirma que os EUA devem ser mobilizados no processo para pressionar o Egito a absorver os residentes palestinos de Gaza, e que outros países europeus – particularmente Grécia e Espanha – bem como o Canadá devem ajudar a absorver e acolher refugiados palestinos. 

Um debate político alargado

Também o Instituto Misgav, um grupo de reflexão de direita liderado por Meir Ben-Shabbat, assessor próximo do primeiro-ministro Netanyahu e ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel, emitiu uma tomada de posição pedindo, igualmente, a transferência forçada da população de Gaza para o Sinai.

O estudo foi escrito por Amir Weitmann, activista do Likud e próximo colaborador da ministra da Informação, Gila Gamliel. Numa página do Facebook intitulada “Plano de Reinstalação de Gaza no Egito”, Weitmann entrevistou o deputado do Likud Ariel Kallner, que lhe disse que “a solução que vocês estão a propor, transferir a população para o Egipto, é uma solução lógica e necessária”.

Esta não é a única ligação entre o Likud, o ministério da Informação e  grupos de reflexão de direita. O documento do ministério da Informação foi divulgado pela primeira vez entre um grupo de ativistas de direita que, juntamente com o partidário do Likud Whiteman, promovem o restabelecimento de colonatos israelitas na Faixa de Gaza e a transferência de palestinos que aí vivem .

Segundo um destes activistas, o documento do ministério da Informação chegou até eles por meio de uma fonte do Likud e a sua divulgação pública visou saber se “o público israelita está disposto a aceitar as ideias de transferência a partir de Gaza”.

A opção preferida

As possibilidades de implementar plenamente esse plano, o que equivaleria a uma limpeza étnica total da Faixa de Gaza, são negligenciáveis por vários motivos.

O presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, disse que se opõe firmemente à abertura da passagem de Rafah para absorver a população palestina de Gaza. Argumentou ele que a deslocação de palestinos para o Sinai ameaçaria a paz entre Israel e Egito, alertando que isso levaria os palestinos a usar o território egípcio como base para continuar os confrontos armados com Israel. Um plano semelhante foi apresentado no passado pelas autoridades israelitas e, até agora, não resultou num debate político sério.

Além disso, após semanas de informações segundo as quais os EUA estavam a aventar a possibilidade de transferir palestinos para o Egito no quadro de um “corredor humanitário”, o presidente dos EUA, Joe Biden, acabou por dizer que ele e Sisi estavam empenhados em “garantir que os palestinos de Gaza não serão transferidos para o Egito ou qualquer outra nação”.

O documento do ministério da Informação afirma que o Egipto terá “a obrigação, no âmbito do direito internacional, de permitir que a população passe” e que os Estados Unidos podem contribuir para o processo “exercendo pressão sobre Egito, Turquia, Catar e Arábia Saudita”.

“Os Emirados Árabes Unidos devem contribuir para a iniciativa, seja com recursos ou com a absorção de pessoas deslocadas”. O documento também propõe a realização de uma campanha pública dedicada ao mundo árabe, “enfatizando a mensagem de assistência aos irmãos palestinos e do seu realojamento”.

Por fim, o documento observa que a “migração em larga escala” de não combatentes/civis de zonas de combate é um “resultado natural e pretendido” que também ocorreu na Síria, Afeganistão e Ucrânia, concluindo que apenas a expulsão da população palestina será “uma resposta apropriada [que] criará dissuasão significativa em toda a região”.

Tudo contra um Estado palestino

O artigo apresenta duas outras opções sobre o que fazer com os habitantes de Gaza, após a guerra. A primeira é permitir que a Autoridade Palestina (AP), liderada pelo partido Fatah na Cisjordânia ocupada, governe Gaza sob os auspícios israelitas. A segunda consiste em fazer nascer outra “autoridade árabe local” como alternativa ao Hamas.

Ambas as opções, argumenta o documento, não são desejáveis para Israel numa perspectiva estratégica e de segurança, e não fornecerão uma mensagem suficiente de dissuasão, especialmente em relação ao Hezbollah no Líbano.

Os autores do estudo também fazem notar que a introdução da Autoridade Palestina em Gaza seria a opção mais perigosa, pois poderia levar à criação de um Estado palestino.

“A divisão entre a população palestina da Judeia-Samaria [isto é, a Cisjordânia] e Gaza é hoje um dos principais obstáculos que impedem o estabelecimento de um Estado palestino. É inconcebível que o resultado deste ataque [de 7 de outubro pelo Hamas] possa constituir uma vitória sem precedentes para o movimento nacional palestino e um caminho para o estabelecimento de um Estado palestino”, diz o documento.

O documento argumenta ainda que um modelo de governo militar israelita e de governo civil da AP, como o que existe na Cisjordânia, provavelmente fracassará em Gaza. “Não há como manter uma ocupação militar efectiva em Gaza apenas com base na presença militar sem colonatos [israelitas]; em pouco tempo haveria pressão interna israelita e internacional para a retirada”.

Os autores acrescentam que, em tal situação, o Estado de Israel “será considerado uma potência colonial com um exército de ocupação – semelhante à situação actual na Judeia-Samaria [Cisjordânia], mas ainda pior”. E fazem notar que a AP goza de fraca legitimidade entre a opinião pública palestina e que – com base na experiência anterior de Israel de entregar o controle de Gaza à AP e da posterior tomada do poder pelo Hamas – Israel não deve “repetir o mesmo erro que levou à situação actual”.

Nota do editor

A crueza do que neste documento é dito inquieta mesmo alguns meios israelitas, provavelmente menos predispostos a aceitar a selvajaria posta em andamento e, sobretudo, preocupados com o futuro de Israel. Na verdade, o isolamento a que o regime sionista está votado em todo o Médio Oriente, bem como a onda mundial, provavelmente inédita, de apoio à Palestina e à sua independência, não auguram nada de bom para a sobrevivência de Israel.

O artigo que divulgamos, publicado pelo site israelita 972 Magazine, dá conta desses temores, distanciando-se dos propósitos oficiais. Note-se, ainda assim, como, no meio da crítica ao projecto genocidário, identifica a Cisjordânia palestina com a designação judaica, adoptada pelo governo de Israel, de Judeia-Samaria… O “novo mapa do Médio Oriente” que Netanyahu mostrou na ONU em setembro passado, fazendo tábua rasa dos territórios da Palestina,  calou fundo, pelos vistos, mesmo entre alguns dos seus críticos. 

Da parte dos dirigentes israelitas sobram as promessas de vingança e de destruição do Hamas. 

O genocidio está em marcha, nada é poupado: habitações, escolas, hospitais, centros das Nações Unidas, Cruz Vermelha ou Crescente Vermelho, ambulâncias em serviço de evacuação de feridos graves, ou mesmo as rotas de fuga que Israel indica aos palestinos.

No plano militar e político está garantido o apoio incondicional dos EUA, da UE e do Ocidente “alargado” aos nazis que dirigem Israel. O mesmo Ocidente, atente-se, que fulmina o resto do mundo com sanções e se afunda na guerra da Ucrânia.

Os acontecimentos na Palestina, na sua brutalidade, mostram que – a coberto do “direito de defesa” sempre outorgado a Israel pelos nossos dirigentes e por esforçados comentadores – está em curso a dizimação do povo de Gaza que Israel estenderá à Cisjordânia se para isso tiver mãos livres.

Conhecido, porém, o plano do ministério da Informação israelita, a ideia, já de si absurda, de que as vítimas palestinas são os efeitos laterais do “direito de resposta” de Israel fica sem suporte. Não é apenas a desproporção das vítimas que a desmente – é o facto agora provado de que existe um plano, uma ideia, uma teoria, uma teologia, o que se quiser, para a erradicação de um povo da terra que lhe pertence.


Comentários dos leitores

O Terrorismo do Hamas e o Genocídio de Israel (Novembro 2023) (2) – Insustentável Leveza 2 23/11/2023, 14:26

[…] Preto no branco, o plano sionista de expulsão dos palestinos por Yuval Abraham […]


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