Interrogações sobre as eleições na Madeira
Manuel Raposo — 28 Setembro 2023
Em quarenta e sete anos, desde 1976, o PSD ganhou todas as eleições legislativas regionais na Madeira, assegurando a liderança dos catorze governos resultantes. Apenas nas duas últimas não conseguiu maioria absoluta, mas mesmo assim obteve cerca de 40% dos votos expressos. Quando uma mesma força partidária consegue manter uma tal hegemonia anos a fio, há que perguntar porquê e como — sobretudo sabendo-se que o “paraíso” montado em torno da autonomia regional mal esconde uma taxa de pobreza de 30%.
Não é simplificação demasiada dizer que a vida da Madeira assenta no tripé constituído pelo turismo, a construção civil (muita dela, obras públicas controladas pelo Governo Regional) e as vantagens fiscais advindas da zona franca (esta sim, um verdadeiro paraíso, mas financeiro).
O PSD, pela mão de Alberto João Jardim, soube apoderar-se das alavancas de controlo de todos estes sectores de actividade. Teceu uma rede clientelar que, a partir dos órgãos de poder (desde o governo regional às câmaras municipais e aos centros empresariais), domina a economia, a vida política e a comunicação social do arquipélago.
Foi este ambiente de tipo feudal que o cappo AJJ soube construir, inclusive promovendo acesas guerras de poder com os representantes da República na Região e chegando a brandir a ameaça da independência. E é neste mesmo ambiente senhorial que o subalterno de turno Miguel Albuquerque se consegue manter como líder.
A quebra que o PSD teve nas duas últimas eleições regionais (em 2019 e na semana passada), perdendo a maioria absoluta, são um ligeiro sinal de que a hegemonia jardinista pode estar a perder terreno, significando que o sistema feudal e a sua teia de interesses sofre abalos. A isto não são alheios os elevados níveis de pobreza (o maior do país) e de desemprego (também um dos maiores). Mas, a avaliar pelo conjunto dos recentes resultados eleitorais, há ainda muito caminho pela frente até que se dê uma viragem assinalável.
O eleitorado — ou seja, os 50% de eleitores que votaram — aposta claramente na “estabilidade” laranja que lhe vai permitindo manter a vidinha, para uns remediada, para outros à larga. E os outros 50%, muitos deles seguramente pertencendo aos 30% dos pobres, que pensam eles? Por enquanto, toleram a situação, achando, provavelmente, que nada podem fazer e que para pior já basta assim. Seguramente, porém, não vivem satisfeitos. Mas quem poderá falar por eles?
O PS disputa a hegemonia do PSD para lhe tomar o lugar, mas não representa uma mudança viável aos olhos de quem decidiu votar, como mostra a quebra enorme de apoio face a 2019, ficando apenas pela metade dos votos da coligação de direita PSD-CDS (mesmo com o PSD associado a um provável cadáver).
(O mesmo acontece, mas em espelho, com o país: o PSD de Montenegro disputa a hegemonia do PS de Costa para lhe tomar o lugar, mas não para produzir qualquer mudança, a não ser no que respeita a acelerar o ritmo de desmantelamento dos serviços sociais e de beneficiação do capital privado.)
A dispersão e a fraqueza das forças à esquerda do PS (não desprezando os esforçados ganhos obtidos) revelam incapacidade para captar, em números significativos, a massa pobre e a massa abstencionista. Essa base social, no entanto, existe e está seguramente à espera de alguém que fale a sua linguagem e defenda com radicalidade os seus interesses. Radicalidade significando agarrar pela raiz os interesses dos pobres e dos silenciados.
O crescimento do Chega, à direita do PSD, mostra, pelo contrário, a capacidade da extrema-direita para chamar a si uma boa parte dos descontentes. Como? Simplesmente pelo facto de, mesmo com promessas politicamente vazias, concitar a raiva surda que a massa popular tem aos poderosos por intuir neles a razão da sua condição de pobres e de despojados de direitos. Porque não consegue a esquerda ganhar esse apoio no mesmo grau?
Depois da bravata da ameaça de demissão se não tivesse maioria, o subalterno Albuquerque desceu ao concreto e tratou de encontrar o deputado que lhe faltava para a maioria. Em poucas horas, o PAN prestou-se ao serviço. A aliança é fruto de um duplo oportunismo: o PSD quer uma muleta dócil e politicamente barata; o PAN quer promoção pública a qualquer preço. Sem qualquer programa político digno desse nome, a jovem deputada regional do PAN será apenas uma idiota útil para manter a turma de Albuquerque à tona de água por mais quatro anos.
Tirem-se daqui lições acerca do que são e do que estão dispostos a fazer os partidos, como o PAN, que, achando-se “pós-modernos”, consideram “ultrapassada” a “dicotomia” esquerda-direita.
O PSD madeirense não teve, assim, de estender a mão ao Chega, como fez nos Açores, para conseguir maioria governativa. O negócio foi conseguido por preço módico. Montenegro, obrigado a baixar a crista diante do meio-fracasso de Albuquerque, pôde respirar de alívio por não ter, desta vez, de recorrer aos apaniguados de André Ventura. Mas, na euforia do momento, soltou uma expressão que lhe atraiçoa o pensamento: “Não vamos governar com o apoio do Chega porque não precisamos”. E se precisarem?
Comentários dos leitores
•leonel l. clérigo 29/9/2023, 14:11
UM "LIMIANO" à MADEIRENSE
A "IDEOLOGIA" é coisa bem curiosa: cada Um refere aquilo que "mais lhe convém". Daqui,
advém sua importância: revelar os "desejos e ambições escondidas" nas "almas" - Grupos ou Classes Sociais... - sempre mascaradas para melhor serem acolhidas no "desinfetado" REINO dos UNIVERSAIS.
Tentar "descodificar" esta operação "ilusionista" dá Trabalho e não só. Mas é Essencial a quem se quiser aventurar por uma qualquer ANÁLISE de CONCRETA de Classes ou outra.
Acima, Manuel Raposo (MR) procura dar-nos conta de mais uma Operação de Sucesso tipo
"QUEIJO LIMIANO" que muitos - a tal IDEOLOGIA... - acham mais adequado catalogá-la de GERINGONÇA, mais indicadora das "águas onde navegam".
O texto de MR tem a vantagem - em minha opinião - de não se ficar pela análise do
QUEIJO em si, mas de TODA a QUEIJARIA cuja História remonta ao 25 de Abril e até a muito antes. De facto, só assim se consegue dar "sentido" aos Acontecimentos e entendê-los.
1 - Um ponto sobre o texto que gostaria agora de colocar.
Desde sua DESCOBERTA que a Madeira parece ter sofrido uma vida "atribulada".
A "crise revolucionária" portuguesa de 1383-85, trouxe ao Poder do Reino a Dinastia de AVIS donde saiu a "Ínclita Geração". Destes, tudo parece indicar que o "carola da família" era PEDRO, mais tarde Duque de Coimbra. E julgo ter lido algures que foi ele - um "vivido" das Sete Partidas - que sugeriu ao seu irmão HENRIQUE o "negócio" do açúcar na MADEIRA recém-descoberta. Este negócio floresceu salvaguardando as "finanças do reino" até a descoberta do "imenso" BRASIL o destronar.
Com a "fuga" da Produção da cana açucareira para o Brasil a Madeira vai, lentamente, entrar em decadência donde não mais saiu apesar da procura de "alternativas" no MERCADO MUNDIAL para produtos agrícolas.
2 - Não é então de admirar que o RENTISMO - bem adequado ao Poder imobilista da ALIANÇA de cariz FEUDAL dos BRAGANÇAS/IGREJA CATÓLICA iniciada com D. MANUEL I - acabasse por desembocar - como refere MR - no TURISMO e nas OBRAS PÚBLICAS que incentiva, a que se juntou mais recentemente o RENTISMO dos
"FINANCEIROS". (1)
De facto, a ancestral "estratégia" RENTISTA que a longa ALIANÇA fez perdurar na MADEIRA nos AÇORES e no próprio PAÍS, continua a marcar o cunho dum ESTADO com larga dominação PATRIMONIALISTA.
(1) - Alguém escreveu recentemente algo curioso: no fim da CRISE ESTUDANTIL COIMBRÃ de 69, os "estudantes do Norte" quando "regressados a casa" vinham "TRANSFORMADOS". Desconheço que "tipo" de ABANÃO foi esse, dado o estado IMOBILISTA do PAÍS, 50 anos passados sobre o 25 de Abril.
•leonel l. clérigo 30/9/2023, 13:28
ESCLARECIMENTO sobre o PATRIMONIALISMO
Um amigo meu perguntou-me que queria eu dizer - acima - com essa do ESTADO PATRIMONIALISTA.
E anotou que vem fazendo falta o MV dar INSTRUMENTOS "simples" - quando possível... - para que se possa entender melhor o que nos está a acontecer no dia-a-dia, sobretudo quando estamos assistindo a um amontoar de palavreado opaco e oco anglo-americano em todo o lado e com a complacência do TUGA.
Vou então tentar dar "umas dicas" sobre o pouco que sei disso, chateando o MV e seus leitores.
1 - O PATRIMONIALISMO foi-nos trazido pelo Sociólogo alemão MAX WEBER mas, curiosamente, os nossos Weberianos dos "vários costados", vêm passando por ele como "cão por vinha vindimada". Mau sinal e por duas questões.
Por um lado, como refere SÉRGIO BUARQUE de HOLANDA, o Patrimonialismo tem no BRASIL o carimbo Português e Ibérico ou seja, teve e tem fortes raízes no PORTUGAL FEUDAL que ainda por aí anda disfarçadamente à solta.
Por outro lado - e atendendo às "notícias" preocupantes que hoje vemos assiduamente na Comunicação Social - o PATRIMONIALISMO significa "ausência de distinção entre os LIMITES do PÚBLICO e do PRIVADO". Ou seja e no dizer de HÉLIO JAGUARIBE, é uma enraizada "cultura de apropriação daquilo que é público pelo privado", só possível porque a autoridade estatal é fundamentada principalmente no poder pessoal exercido pelo governante (ou corporação) sobre suas propriedades. A TAP é um exemplo.
2 - Os fãs do PATRIMONIALISMO são geralmente gente ou grupos conservadores e reaccionários. Não admira então que PORTUGAL não saia da "cepa torta" e com o "cinto sempre apertado".
As telenovelas Brasileiras retrataram isso bem ao incidirem nos célebres CORONÉIS onde foi Mestre JORGE AMADO. E por muito que nos custe, temos ainda por cá "muitos CORONÉIS" ou não fosse a POLÍTICA de CLIENTELA uma das características "cá do Burgo".