França: crise da civilização burguesa posta a nu
Manuel Raposo — 6 Julho 2023
Quem não queira confundir o rastilho com a pólvora percebe que os motins dos últimos dias em França não têm propriamente a ver com o assassinato do jovem Nahel Merzouk às mãos da polícia — de que apenas são o efeito imediato —, mas radicam num profundo apodrecimento da sociedade francesa. As suas marcas são o racismo, a desigualdade económica, a repressão que atingem sobretudo os franceses de segunda e os imigrantes.
Some-se a isto o marasmo económico e a decadência do sistema de poder, ferindo todas as classes trabalhadoras e boa parte das classes médias, e teremos um quadro do barril de pólvora sobre o qual se vive.
As novas gerações que agora vêm para a rua protestar, por todos os meios, contra o assassinato de um dos seus já interiorizaram a certeza de que vão viver toda a vida pior ainda que os seus pais, e que o sistema social em que vegetam não tem nada mais para lhes oferecer do que uma pauperização crescente. E sabem também que qualquer protesto seu contra as desigualdades e as injustiças tem forte probabilidade de ser tratado com cargas policiais e com acusações de sedição.
Os milhares de jovens e adolescentes, alguns quase crianças, que atacam lojas, bancos, carros e símbolos do poder, como sedes de câmaras municipais e autarcas, dão sinal de um ódio de classe acumulado, de uma aversão instintiva ao sistema social, que a moralidade das autoridades não consegue entender. Dizer que “São criminosos, ponto” — como disse o finório António Lobo Xavier, administrador de uma dezena de empresas e conselheiro de Estado — é repetir a bacorada atribuída a Marie Antoinette de mandar o povo comer brioche já que não havia pão. É a sociedade, a vossa sociedade que está podre, estúpidos!
Comentadores obtusos, mandatados para denegrir o movimento, apontam os assaltos às lojas dos bairros chiques como sinal de um aproveitamento oportunista da parte dos manifestantes. Achariam, certamente, que seria mais “honesto” os manifestantes roubarem lojas de pobres e artigos de quinta categoria como os que têm nos seus bairros. Não percebem que uma sociedade que promove o luxo, a ostentação e a futilidade como modelos e depois nega à maioria da sua população o acesso aos bens correspondentes, e em muitos casos os próprios bens básicos da vida — não percebem que uma tal sociedade está condenada, por isso mesmo, a ser virada do avesso pelos que hoje estão por baixo.
Os protestos — não por acaso, mas por um sentimento de causa comum — estenderam-se da origem, em Nanterre e Paris, a várias outras cidades de França, de norte a sul, entre elas Tours, Nantes, Lyon, Pau, Marselha, e mesmo à ilha de Reunião no oceano Índico. Em várias delas, como Marselha, as comunidades de origem magrebina e a imigração têm forte peso e sentem muito bem o que é discriminação, pobreza e injustiça.
Tais protestos prolongam, agora sob a forma de raiva incontida, aquilo que os Coletes Amarelos expressaram desde 2018, e durante anos, de modo essencialmente pacífico — sofrendo, mesmo assim, uma repressão brutal — sem que as suas exigências fossem sequer ouvidas. Os jovens revoltados, à sua maneira, dão também sequência às gigantescas manifestações, em que toda a França maciçamente participou, contra a miserável alteração da lei das reformas do autocrata Macron.
Sim, autocrata. Porque Macron só conseguiu que a lei fosse para a frente com recurso a um golpe — coberto por uma excepção constitucional, mas na mesma um golpe — que o furtou a uma derrota segura no parlamento. O pseudo-democrata Macron, eleito por exclusão de partes em 2017, tornou-se um símbolo do que é a pseudo-democracia do capital.
Admiram-se que a extrema-direita tire dividendos? É a massa popular com as suas exigências de igualdade e de justiça que estimula o fascismo? Ou é o poder que lhe franqueia as portas ao reprimir o povo? Dois terços da população francesa e 90% dos trabalhadores no activo rejeitaram a alteração da lei, e mesmo assim Macron tratou de a impor. Com democratas desta espécie quem precisa de ditadores?
O pedido patético de Macron para que os pais tivessem mão nos filhos menores e não os deixassem sair de casa, pensando que assim debelava a revolta, é outro sinal de cegueira. O mesmo com a repetida afirmação, de Macron e da primeira-ministra Borne, de que “nada justifica” a violência “indesculpável” dos protestos, lançando uma espécie de anátema moral sobre os manifestantes. Em qualquer dos casos, fica patente a impotência do poder, por pouco tempo que seja, perante uma onda de radicalização extrema, como a que se desencadeou a partir de Nanterre. Marie Antoinette parece reviver de tempos a tempos no espírito dos governantes em apuros.
A realidade que o poder não encara — porque, pela sua natureza de poder oposto às reclamações populares, não a pode encarar — é a rejeição radical de que é alvo por parte da população em momentos como o que se viveu agora em França. Repetimos: Coletes Amarelos, levantamento geral contra a lei das reformas e motins pela morte de Nahel são contas do mesmo rosário. Aos olhos das massas populares, é a legitimidade do poder que está em causa.
O mal da França, por outro lado, é a manifestação mais gritante do mal que atinge a Europa. Os protestos de França tiveram réplicas na Bélgica e na Suíça, facto muito pouco atendido pelos média. Mesmo simbólicos, estes ecos revelam que, política e socialmente falando, não há uma muralha nas fronteiras dos estados europeus.
Por enquanto, a maioria dos europeus sofre em silêncio os efeitos do retrocesso económico, da subida dos preços, da guerra promovida pela Nato, da degradação inevitável do estado social — enfim, de um recuo civilizacional geral. Mas, a prazo, esta contínua queda para o abismo é insustentável.
Um capitalismo materialmente falido, cultural e moralmente desfeito, institucionalmente degradado não pode oferecer horizontes de futuro. Uma sociedade que, pela própria voz dos seus mentores, só consegue oferecer um amanhã pior que o dia de hoje — e que afirma apenas poder subsistir nessa condição! — é uma sociedade que caminha para o fim. É isso que está expresso nas lutas de massas em França.
O descontentamento das classes trabalhadoras é um facto, mesmo quando não se manifesta como agora em França. A interrogação que tem de se colocar, para a qual não parece haver ainda resposta, é esta: O que falta ao movimento social para fazer frente a um poder apodrecido e para encaminhar os países europeus numa senda favorável às classes trabalhadoras? O que falta para que os movimentos sociais de protesto não se esgotem sucessivamente sem que se opere uma mudança no rumo político e no poder? Como forjar uma direcção política que ataque o capitalismo e os seus órgãos de poder a fim de evitar que sejamos esmagados por eles?
Comentários dos leitores
•Manuel Baptista 6/7/2023, 13:13
Os poderes têm meios cada vez mais sofisticados de repressão e -sobretudo- de controlo. Isso permite-lhes desmontar peça por peça o «Estado social» e mesmo o «Estado de Direito», para perpetuar a ditadura do capital, sem disfarces.
A alternativa não pode ir a reboque de espontaneismos, nem de vanguardismos, tem de ser uma nova forma de fazer política e trabalho social.
Essa nova forma não pode permitir que nos separem, mas antes deve ser agrupadora de todos os que estão «por baixo», independentemente das suas ideologias, religiões, origens étnicas, etc. Não vejo são este caminho, tudo o resto são atalhos falsos, que vão lançar o movimento popular para um beco e por fim, uma derrota. Não precisamos de chefes nem de vanguardas: precisamos de nos agrupar e fazer avançar o movimento pela participação genuína e democrática de todos e de cada participante.
•chico 6/7/2023, 18:41
Pois, o que parece faltar é uma direcção política. Mas uma direcção politica que seja portadora interprete e aplicadora de uma ideologia politica, essa sim que saia das massas e estas construam, defendam e considerem como sua.
•crise da civilização burguesa posta a nu em frança – oxisdaquestaoblog 7/7/2023, 10:01
[…] O original encontra-se em www.jornalmudardevida.net/2023/07/06/franca-a-crise-da-civilizacao-burguesa-posta-a-nu/ […]
•MRocha 7/7/2023, 13:04
Excelentes questões finais. Mas que encerram em si um problema conceptual: o que "falta ao movimento social" é ser isso mesmo - um movimento social - e não mera convergência pontual de uma miriade de expectativas individuais insatisfeitas. A "crise da civilização burguesa" a que o autor alude só é crise para quem não consegue lugar no topo. Ou o autor deu noticia do Mbappé ou do Zidane entre os manifestantes ? Como dizia o senhor meu avó, a única diferença entre ricos e pobres é os pobres ainda não são ricos, porque quando o forem fazem exatamente o mesmo que qualquer rico. Houve quem chamasse a isso "a tragédia dos comuns", e não faço ideia se faz parte do curriculum das faculdades de arquitectura.
•antonio alvao 7/7/2023, 16:21
Se o Chico precisar de ser dirigido por alguém, eu dirijo muito bem, já dei provas disso e, posso enviar o meu curriculum vitae. Se o Chico está a pensar dirigir-me a mim, por eu ser militante de base da pirâmide(?) Não contes com isso, porque eu sei dirigir-me muito bem.
Na minha opinião, o radicalismo e o espontaneismo são o grau mais elevado da consciência de classe. Em Portugal não existe, nem uma coisa nem outra! Existe muito é: amorfismo e analfabetismo político! Talvez as coisas mais radicais não façam falta, porque o "proletariado" sabe muito bem onde ficam as urnas de voto.
•adilia mesquita 7/7/2023, 18:48
Aparentemente o movimento de revolta a que assistimos é um movimento inorgânico e nesse sentido não deve ter pernas para andar, o que é lamentável; diz também muito sobre a decadência da esquerda no mundo contemporâneo e parece-me que ignorar esta questão e nada fazer tem consequências mais do que desastrosas. Claro que o ideal (iluminista) é que cada um pense por si, tenha autonomia e não seja dirigido, mas cada um não é um movimento social e nesse caso sem organização a ação será caótica e inconsequente.
•antonio alvao 7/7/2023, 21:55
Esquerda, etc. . . .
A esquerda ética e de valores de liberdade e de emancipação - há muitas décadas que entrou em decadência - A esquerda dos últimos tempos, não falam dos valores do socialismo e do comunismo. Ou têm vergonha de os reivindicar ou não os conhecem(?) Não basta andar sempre com a palavra esquerda na boca e mendigar votos , sem participação coletiva em inventos apartidários.
"socialistas-socialismo" - estas duas palavras fazem parte do pseudónimo do socialismo etimológico; que é para enganar muita gente, mas não enganam toda a gente. Para entendermos bem estes socialistas, em minha opinião, devemos estudar o Congresso da Social-Democracia e o que lá foi aprovado..., em 1959, na Alemanha, liderado por Willy Brandt. Os estudos devem ser rigorosos.
Há outras ideologias que se abrigaram também debaixo de pseudónimos ideológicos, para cobrir outras realidades e impedir a emancipação dos trabalhadores e o socialismo como sistema político de transição para o comunismo. O comunismo não é uma ditadura! O comunismo é uma alegria de Bem-Estar coletiva, onde todas as pessoas se sentem bem - cantam, dançam, divertem-se, trabalham; têm lazer, pensamento critico e produção da cultura da mente; sem medos de se expressar livremente. Eu penso não haver literacia destes temas na sociedade portuguesa, infelizmente!
Na minha opinião, devemos voltar à estaca zero, estudar estes assuntos e outros; estudar as ideologias etimologicamente; combater o dogmatismo; o oportunismo - debatermos estes assuntos e outros que acharmos úteis e deixarmos cair um pouco o preconceito ideológico.
•alirio jose pinho 12/7/2023, 17:12
Vale a pena abordar esta visão/0piniao
•MANUEL BAPTISTA 13/7/2023, 20:04
Note-se uma coisa: os mais «ferozes» defensores - em palavras - do radicalismo político, geralmente não têm uma prática revolucionária a condizer. Eu estabeleci uma equação, há alguns anos: «Quanto mais radical o discurso, mais reformista ou mais insignificante o trabalho concreto».
Os comentários acima mostram a necessidade de cada pessoa «subir» do individual para o coletivo: dos seus pontos de vista individuais, para pontos de vista coletivos. Com isto quero dizer que estimo os vossos sentimentos. Mas não é com sentimentos (apenas) que se fazem as transformações sociais. Nem a violência é capaz de «parir» uma nova sociedade fraterna e justa, apenas uma violência igual ou maior à que se pretende derrubar.
Não é ao nível do discurso que temos de nos encontrar: aí «cada cabeça, sua sentença» ...é ao nível de ações práticas, pelas quais possa existir consenso entre nós. Evidentemente não procuro consenso com os que estão do lado oposto da barricada. Embora... seja possível, nalguns casos , que certos indivíduos, se transformem e façam causa comum com «os de baixo» (mas isto é outra conversa). O que interessa é unir-nos em torno de objetivos concretos, através de ações concretas, com real espírito revolucionário, ou seja, sem eliminar ninguém, ou desprezar o seu ponto de vista.
•leonel l. clérigo 17/7/2023, 14:47
Manuel Baptista:
Já estou como o outro: "Meu caro Sr. como é possível viver sem ter Ideias?"
"O que que faz falta, para animar a malta..." é um Programa com Objectivos Concretos de Política Económica que aponte um caminho diferente desta pastelada Burguesa com 50 anos e que já se viu não levar a lado algum com o bengala da Europa.
Porque continuamos - e vamos continuar... - nos "fundos das tabelas" da hierarquia dos "Desenvolvidos"?
Sabemos nós - enquanto Sociedade - sair deste "atafacho" do cinto sempre apertado? Pessoalmente não vislumbro hoje uma única proposta decente que saia das velhas generalidades há muito sabidas...
•mraposo 18/7/2023, 10:23
A máxima com que MRocha nos brinda é velha de séculos. As classes dominantes de todos os azimutes sempre trataram de denegrir a revolta dos dominados como inútil, perversa, ou pecaminosa. Só que o fazem de modo menos "conceptual". Mais terra-a-terra, fazem crer que o que move os pobres e os de baixo é "a inveja". Há nisto, de resto, ressonâncias bíblicas. O problema só é verdadeiramente problema quando são os de baixo a aceitar a ideia, a fazê-la sua e a dar-lhe aura de "conceito". No caso de MRocha, parece que a tradição já vem do tempo do avozinho.