Afinal, quem promove o fascismo?

Manuel Raposo — 30 Setembro 2022

Dilacerada por enormes tensões internas mal disfarçadas, a União Europeia abeira-se da desagregação

Cem anos depois de Mussolini ter chegado ao poder, o fascismo volta a governar a Itália. A vitória anunciada de Giorgia Meloni não mereceu, ao longo de semanas, quaisquer comentários da parte dos líderes europeus, parecendo que todos eles encaravam o caso, não só como inevitável, mas também como normal e aceitável. Apenas nas vésperas do dia da votação a porta-voz dos eurocratas, Ursula von der Leyen, resolveu lançar um aviso, tão inútil como estúpido, brandindo a ameaça de sanções se os novos governantes de Itália não se comportassem pelas regras de Bruxelas. 

Novo balanço de forças

Esta vitória fascista não tem a mesma qualidade das vitórias obtidas nos últimos anos pela extrema-direita na Europa. Desta vez, não foi a direita, mais ou menos extrema, que levou consigo pela mão partidos fascistas menores a fim de obter maiorias necessárias para governar. Foi o contrário: os Irmãos de Itália (abertamente admiradores de Mussolini)arrastaram atrás de si um outro partido fascista, a Liga Norte, e ainda a extrema-direita da Força Itália. 

A relação de forças entre direita e fascismo inverteu-se, a ponto de a direita vulgar ser agora dispensável para o acesso dos fascistas ao poder.

A vitória em Itália sucedeu, poucos dias depois, a uma outra vitória de um partido de matriz nazi na Suécia, uma das tão louvadas pátrias da social-democracia europeia. Sem esquecer que em França quase metade do eleitorado votou por Le Pen há poucos meses, que a Áustria continua governada pela extrema-direita vai para uns anos, que na Holanda a segunda força parlamentar é igualmente a extrema-direita, que em Portugal e Espanha partidos admiradores de Salazar e de Franco ganharam forte apoio popular e representação parlamentar. Etc. 

Longe de ser episódico e localizado, o movimento está generalizado e ambiciona a hegemonia na Europa.

Silêncio comprometido

O silêncio dos líderes europeus entende-se. 

Quem estende a mão à extrema-direita para se manter no governo; quem adopta sem rebuço parcelas dos seus programas extremistas para captar votos; quem usa as eleições como mera formalidade para legitimar um poder político realmente assente na força do dinheiro — não tem moral para criticar os fascistas quando eles tomam o freio nos dentes e se guindam a esse mesmo poder em processos eleitorais tão normais como quaisquer outros.

Quem se serve de forças de choque nazis para colocar a Ucrânia na sua órbita; quem alimenta uma guerra sem fim, dispondo da vida das populações e impondo-lhes sacrifícios inaceitáveis; quem pinta o regime facínora de Zelensky com as cores da democracia e da liberdade — não tem margem política para atacar os partidos fascistas onde quer que eles levantem cabeça ameaçando subverter os regimes democráticos. 

A voz corrente dos poderes instalados tem usado o argumento fácil de que são as “autocracias” (tidas, obviamente, como alheias à “Europa dos valores democráticos”) os promotores da extrema-direita europeia — particularmente o regime russo de Putin. Como se o fascismo não tivesse historicamente nascido precisamente na Europa. Como se a presidência de Trump não tivesse encarregado os seus sequazes da missão de criar uma internacional que congregasse as formações fascistas europeias. Como se o actual regime polaco, furiosamente anti-russo, não fosse um dos pioneiros do fascismo institucionalizado dentro da União Europeia e a principal ponta-de-lança da Nato contra a Rússia. 

A prova mais fresca de que a mão invisível da Rússia não explica nada, e não passa de uma cortina de fumo para esconder as verdadeiras raízes do fenómeno, está no facto de a nova líder dos destinos da Itália ser uma convicta “atlantista”, alinhada com o imperialismo norte-americano.

Um mal de raiz

De onde brota, então, o fascismo renascente na Europa?

A dificuldade das burguesias europeias em abordarem esta questão, que não seja pela via derivativa da “mão externa”, advém do facto de serem as próprias mazelas do capitalismo europeu (e mundial) e a degradação correspondente das suas instituições que estão na raiz do problema.

Os regimes democráticos do ocidente capitalista (partidos e instituições) consolidaram-se na base e na condição de um crescimento económico contínuo que, de algum modo, fosse proporcionando certo grau de progresso às suas populações. 

À custa da exploração colonial e imperial, criaram uma vasta classe média (pequena e média burguesias) satisfeita por não ser proletária, e que mantinha esse seu estatuto social apoiando politicamente as classes dominantes, desde que estas retribuíssem assegurando-lhes os privilégios.

O prolongado marasmo do capitalismo ocidental, envelhecido e em perda de hegemonia, vem, contudo, sacrificando desde há décadas, não só as massas trabalhadoras, mas também grande parte dessas classes médias. O fosso social entre “ricos” e “pobres”, melhor dito entre possuidores e despossuídos, cresce continuamente, gerando um empobrecimento absoluto das camadas sociais mais baixas e fazendo descer na escala social mesmo as ditas classes médias. 

Confrontadas com este retrocesso, as classes médias — que foram o esteio dos regimes parlamentares, do bipartidarismo, da estabilidade política “ao centro” — vão deixando de ter razões para apostar em tais regimes. Os partidos “do centro” perdem por isso apoios em favor das propostas extremistas de direita, e as instituições (das eleições aos parlamentos e aos “políticos”) são justamente desacreditadas. O “mistério” da desagregação do “centro” tem origem aqui e não na mera demagogia dos “populistas”.

A falta de alternativa, com peso de massas, de uma esquerda anticapitalista deixa grande parte das classes trabalhadoras e populares vulneráveis à demagogia “de mudança” das forças fascistas, que ganham votos inclusive neste terreno social.

A este pano de fundo acrescentam-se agora as consequências desastrosas da política seguida pelos regimes europeus diante da guerra. 

A guerra acelera o desastre

A Europa abdicou de qualquer assomo de autonomia, quer face à guerra na Ucrânia, quer perante o confronto promovido pelos EUA contra a China. O alinhamento cego atrás dos EUA arrasta as economias europeias para o desastre e anula qualquer veleidade de independência, conduzindo toda a Europa e cada um dos seus países à condição de vassalos dos EUA. 

Aos efeitos da decadência do próprio sistema económico, mal refeito da crise de 2008 e da pandemia, somam-se agora, em consequência da guerra, sacrifícios inéditos impostos às populações a pretexto de defender “valores” de liberdade e democracia já de si desacreditados — caminho este que só pode acelerar ainda mais o desprezo pelos poderes instalados. 

Os argumentos em defesa dos interesses nacionais e populares são deixados nas mãos da extrema-direita e dos fascistas, que assim (mesmo fazendo-o por oportunismo) assumem o papel dos únicos que parecem importar-se com o sofrimento das populações. 

As acusações de “populismo” lançadas contra os fascistas — como se tentar ganhar o apoio do povo fosse em si condenável — apenas lhes reforça a popularidade. Por dois motivos: absolve-os enquanto fascistas, reduzindo-os à condição de demagogos; e promove-os como aqueles que ousam fazer as promessas “populares” que o poder dominante não é capaz de fazer. Por isso se ouve votantes da extrema-direita dizerem “vamos ao menos ver o que estes fazem”.

As inconcebíveis declarações (em Praga, a 1 de setembro) da “democrata” ministra alemã dos Negócios Estrangeiro, a “Verde” Annalena Baerbock — dizendo, com todo o desplante, que a Alemanha continuará a apoiar a Ucrânia mesmo contra a vontade dos eleitores alemães (“Não importa o que os meus eleitores alemães pensem”) — contrasta com a posição do “autocrata” primeiro-ministro Orbán que afirma colocar em primeiro lugar os interesses da população húngara e se nega por isso a alinhar nas sanções à Rússia. Eis um exemplo, entre muitos, do serviço prestado pelos “democratas” aos “autocratas” e “populistas”.

A escolha suicida da UE

O que todos nós estamos a testemunhar é uma prova actualizada do que a história tem mostrado: o imperialismo promove a guerra e a guerra alimenta o fascismo. 

Os EUA, a cabeça do imperialismo mundial de hoje, usando como valete o Reino Unido, criaram as condições que detonaram a guerra na Ucrânia ao torná-la inevitável. 

A recusa do compromisso contido nos acordos de Minsk e mais tarde a sabotagem, por acção dos EUA e do Reino Unido, das negociações de paz entre russos e ucranianos — na Bielorrússia e depois na Turquia, nas primeiras semanas de guerra — mostram, sem margem de dúvida, quem promoveu o conflito e quem o quer prolongar. 

Quase todos os poderes da Europa continental, comprometidos com a Nato, escolheram colaborar na empresa guerreira norte-americana. O preço desta capitulação é a drástica desclassificação da Europa, designadamente da UE, como potência económica, e traduz-se numa acelerada penúria das populações trabalhadoras. 

Que assim não teria de ser fatalmente, provam-no os exemplos solitários da Sérvia, da Hungria ou da Turquia que, de um modo ou de outro, resistem às pressões de Washington ou de Bruxelas. Para além das razões materiais que amarram a Europa ao imperialismo norte-americano, talvez a simples cobardia também ajude a explicar o comportamento dos dirigentes europeus.

A União Europeia, tornada irrelevante, dilacerada por enormes tensões internas mal disfarçadas, abeira-se da desagregação. 

É em terreno assim adubado que a extrema-direita e o fascismo se erguem, neste caso com a ajuda suplementar de uma guerra promovida, financiada e municiada por regimes que, a toda a hora, arvoram bandeiras de “liberdade” e “democracia”. 


Comentários dos leitores

leonel lopes clérigo 30/9/2022, 14:06

DESABAFO

A questão dita GEOPOLÍTICA - com sua análise das relações de PODER entre os diferentes países do Planeta - tem sido a preocupação primeira do MV na sua última fase.
Sendo hoje, ao que parece, uma questão de grande e crescente importância para se apreciar o "estado de saúde" do Capitalismo - na sua Fase Imperialista - não se esgota a sua "análise" nas "Relações Internacionais": a "saúde" dos PAÍSES - que os "anti-populistas" se afanam em "apagar" apesar das suas constantes "preocupações" com o "PIB Nacional" - continuam "vivinhas da costa", assim como suas Contradições de Dominação e Dependência e de "Luta de Classes" interna.

1 - Naturalmente que pode ter algum sentido dizer-se que, em "época de Globalização Imperialista" e de INTEGRAÇÃO EUROPEIA, Portugal não "merece" - com seus "minúsculos" 10.000.000 de TUGAS - ter "Existência Real" nas páginas do MV: a Geopolítica assumiu inteiramente a Dominação e não é "preocupante" o que "acontece" com uma "ninharia" de 10.000.000 numa população mundial de cerca de 7.753.000.000, sobretudo quando preso pelo pescoço a uma "EUROPA" que o consolidou em "gato sapato".

2 - Mas seja como for e apesar do silenciar dos seus graves PROBLEMAS nós, os TUGAS, somos de "carne e osso" apesar de "não termos muito os nervos à flor da pele" e sermos pobres em conhecimento e até de inteligência. O 25 de Abril - passado meio século - parece demonstrar tudo isso e mais ainda: que afinal a HISTÓRIA se repete por estas bandas e o IMOBILISMO parece ser sina nossa.

3 - Daqui, o desabafo que encabeça estas notas ambicionar uma "inflexão" do MV - ainda que "parcial" - rumo aos PROBLEMAS INTERNOS do PAÍS que, curiosamente, parecem continuar mergulhados na noite escura.

José Lopes 28/9/2023, 18:55

Tenho sérias duvidas de que o Reino Unido seja o valete do imperialismo norte-americano.
Pode ter sido no passado, actualmente com a demanda terrorista a Leste, está de corpo e "alma" a ideia de hitler, na criação do espaço vital alemão, daquela região tão desejada pelo nazi.
Tenho até a ideia de que com as contradições no seio dos terroristas norte-americanos, agora na nato a filosofia que reina é a de hitler, disfarçada de democracia, e com a carta das nações unidas, como suporte da agressão.
Depois à que ter em linha de conta, a memória, pois os chamados aliados nunca perdoaram, ter sido o Exercito Vermelho a ocupar o reichtag, nem a layen nazi, ou o borrado, colaboracionista espanhol, o esqueceram.
Devem ter alimentado a ilusão de que a vingança se serve fria, e não esperavam um caldo quente, que infelizmente pode torrar isto tudo, se não apear-mos os terroristas otanascas.


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