O significado de “reconstruir” a Ucrânia

Editor / Michael Roberts — 23 Setembro 2022

Gigantes transnacionais do agronegócio — Monsanto, Cargill, DuPont —tomam conta de todo o sistema agrícola da Ucrânia

As notícias e discussões sobre a guerra na Ucrânia, essencialmente centradas sobre os confrontos militares e políticos, têm deixado na sombra operações de outra ordem, decorridas nos bastidores internacionais do poder, que são cuidadosamente furtadas à opinião e ao julgamento públicos. Estão neste caso as repetidas reuniões à volta da “recuperação” ou da “reconstrução” da Ucrânia. Estas iniciativas, apresentadas como gestos de solidariedade e de apoio, mal mascaram as ambições económicas do capital ocidental a respeito dos recursos naturais da Ucrânia, entre eles a sua imensa riqueza agrícola.

Tais ambições vêm de longe, na verdade desde que a Ucrânia se tornou independente, com o fim da URSS. E pesam grandemente nos acontecimentos políticos que têm marcado a vida do país, sobretudo na última década. 

O Oakland Institute, um observatório económico norte-americano, publicou, em julho de 2014 (cinco meses após o golpe de estado de Maidan), um relatório em que revelava o papel do FMI e do Banco Mundial no conflito ucraniano. Num segundo relatório, o mesmo instituto dizia, em dezembro do mesmo ano: 

“O Oakland Institute expôs como as instituições financeiras internacionais cavalgaram a agitação política na Ucrânia para desregulamentar e abrir o vasto sector agrícola do país às empresas estrangeiras”. 

E acrescentava: “Os agronegócios transnacionais estão a investir cada vez mais na Ucrânia, incluindo Monsanto, Cargill e DuPont”, e, desse modo, “estão a tomar conta de todos os aspectos do sistema agrícola da Ucrânia, [designadamente] contornar as moratórias [sobre venda] da terra, investir em instalações de produção de sementes e insumos, e adquirir instalações de produção, processamento e transporte de bens”.

Entendem-se melhor o golpe de estado de 2014, a insistência da UE em fixar a Ucrânia na sua órbita, o extremismo anti-negocial norte-americano e britânico, o apoio sem limites à oligarquia corrupta de Zelensky, a necessidade confessada de desgastar a Rússia — se for levado em conta, a par dos propósitos militares-estratégicos, o premente interesse das empresas multinacionais imperialistas em apoderar-se dos recursos ucranianos, entre elas os gigantes mundiais do agronegócio.

No texto seguinte, o economista Michael Roberts mostra, nomeadamente com base em dados divulgados pelo Oakland Institute, toda a trama de negócios que se esconde por detrás da fachada de benemerência dos “reconstrutores” da Ucrânia. Nestes se incluindo, lembramos nós, as autoridades e o capital portugueses, mesmo se a sua pequenez não lhes permite outro papel que não seja o de “peixes pegadores”.

 

UCRÂNIA: A INVASÃO DO CAPITAL

Michael Roberts, thenextrecession.wordpress.com, 13 agosto / Workers World, 14 agosto.

Na semana passada [de 6 de agosto], os credores privados estrangeiros da Ucrânia concordaram com o pedido feito pelo país de um congelamento por dois anos nos pagamentos de cerca de  20 mil milhões de dólares de dívida externa. Isso permitiria à Ucrânia evitar o incumprimento dos seus empréstimos obtidos no exterior. Ao contrário de outras “economias emergentes” em dificuldades de dívida, parece que os detentores de títulos estrangeiros ficaram felizes por ajudar a Ucrânia – mesmo que apenas por dois anos. A medida economizará 6 mil milhões de dólares à Ucrânia naquele período, reduzindo a pressão sobre as reservas do banco central, que caíram 28% no acumulado do ano, apesar da ajuda externa significativa.

A economia da Ucrânia está, não surpreendentemente, num estado desesperado. O PIB real deverá cair mais de 30% em 2022, e a taxa de desemprego é de 35%. (Constantinescu et al. 2022, Blinov e Djankov 2022, Banco Nacional da Ucrânia 2022)

A generosidade paga-se

“Estamos gratos pelo apoio do sector privado à nossa proposta em tempos tão terríveis para o nosso país”, respondeu Yuriy Butsa, vice-ministro das Finanças da Ucrânia. “Gostaria de enfatizar que o apoio que recebemos durante esta transacção é difícil de subestimar… Continuaremos totalmente comprometidos com a comunidade de investimentos e esperamos que ela se envolva no financiamento da reconstrução do nosso país depois de vencermos a guerra.”

Aqui, Butsa revela o preço a pagar por essa generosidade limitada da parte dos credores estrangeiros: a exigência acelerada de multinacionais e governos estrangeiros no sentido de porem a mão nos recursos da Ucrânia e colocá-los sob o controle do capital estrangeiro sem quaisquer restrições e limitações.

Em publicação anterior, delineei o plano que visa privatizar e entregar os vastos recursos agrícolas da Ucrânia a multinacionais estrangeiras. E há vários anos, uma série de relatórios do observatório económico do Oakland Institute documentou as aquisições feitas pelo capital estrangeiro. Muito do que se diz a seguir vem desses relatórios.

O cobiçado celeiro da Europa

A Ucrânia pós-soviética, com os seus 32 milhões de hectares aráveis de solo negro, rico e fértil (conhecido como “cernozëm”), tem o equivalente a um terço de todas as terras agrícolas existentes na União Europeia.

O “celeiro da Europa”, como é chamado, tinha uma produção anual de 64 milhões de toneladas de cereais e sementes, situando-se entre os maiores produtores mundiais de cevada, trigo e óleo de girassol. (Quanto a este último, a Ucrânia produz cerca de 30% do total mundial.)

O plano para apropriação dos recursos da Ucrânia provocou em parte o conflito: a semi guerra-civil, a revolta de Maidan e a anexação da Crimeia pela Rússia. Como o Oakland Institute sublinhou, para limitar a privatização desenfreada, foi imposta em 2001 uma moratória na venda de terras a estrangeiros. Desde então, a revogação dessa regra tem sido o objectivo principal das instituições ocidentais.

A ofensiva das multinacionais ocidentais

Já em 2013, por exemplo, o Banco Mundial concedeu um empréstimo de 89 milhões de dólares para o desenvolvimento de um programa de escrituras e títulos de propriedade necessário para a comercialização de terras estatais e cooperativas. Nas palavras de um documento do Banco Mundial de 2019, o objectivo era uma “aceleração do investimento privado na agricultura”. Esse acordo, denunciado na época pela Rússia como uma porta traseira para facilitar a entrada de multinacionais ocidentais, prevê a promoção da “produção agrícola moderna… incluindo o uso de biotecnologias”, uma aparente abertura para cultivo de OGM [organismos geneticamente modificados] em campos ucranianos.

Apesar da moratória na venda de terras a estrangeiros, em 2016, dez empresas agrícolas multinacionais já tinham sob seu controlo 2,8 milhões de hectares de terra. Hoje, algumas estimativas falam de 3,4 milhões de hectares nas mãos de empresas estrangeiras e de empresas ucranianas com fundos estrangeiros como accionistas. Outras estimativas chegam a 6 milhões de hectares.

A moratória sobre as vendas, que o Departamento de Estado dos EUA, o FMI e o Banco Mundial pediram repetidamente para ser removida, foi finalmente revogada pelo governo de Zelensky em 2020, antes de um referendo final sobre o assunto marcado para 2024.

‘Recuperar’ a Ucrânia

Agora, com a guerra a avançar, governos e grandes empresas ocidentais intensificam os planos para incorporar a Ucrânia e os seus recursos nas economias capitalistas do Ocidente. Em 4 e 5 de julho de 2022, altos funcionários dos EUA, UE, Grã-Bretanha, Japão e Coreia do Sul reuniram-se na Suíça para a chamada “Conferência de Recuperação da Ucrânia”.

A agenda dessa CRU estava explicitamente focada em impor mudanças políticas ao país – a saber, “reforço da economia de mercado”, “descentralização, privatização, reforma das empresas estatais, reforma agrária, reforma da administração estatal” e “integração euro-atlântica”.

A agenda foi realmente uma continuação da Conferência de Reforma da Ucrânia de 2018, que enfatizou a importância de privatizar a maior parte do sector público remanescente da Ucrânia, afirmando que o “objectivo final da reforma é vender empresas estatais a investidores privados”, juntamente com apelos por mais “privatização, desregulamentação, reforma energética, reforma tributária e alfandegária”. Lamentando que o “governo seja o maior detentor de activos da Ucrânia”, o relatório afirmou: “A reforma da privatização e das empresas estatais é esperada há muito tempo, pois esse sector da economia ucraniana permaneceu praticamente inalterado desde 1991”.

Contra a vontade dos ucranianos

A ironia é que os planos da CRU de 2018 foram contestados pela maioria dos ucranianos. Um inquérito de opinião pública constatou que apenas 12,4% apoiavam a privatização de empresas estatais, enquanto 49,9% se opunham. (Outros 12% eram indiferentes e 25,7% não responderam.)

No entanto, a guerra pode fazer toda a diferença. Em junho de 2020, o FMI aprovou um programa de empréstimo de 5 mil milhões de dólares à Ucrânia, válido por 18 meses. Em troca, o governo da Ucrânia suspendeu a moratória de 19 anos sobre a venda de terras agrícolas estatais, após pressão continuada de instituições financeiras internacionais.

Olena Borodina, da Rede Ucraniana de Desenvolvimento Rural, comentou que “os interesses do agronegócio e os oligarcas serão os principais beneficiários de tal reforma…[Isto] apenas marginalizará ainda mais os pequenos agricultores e ameaça retirar-lhes o seu recurso mais valioso”.

Zelensky ao serviço 

E agora a CRU de julho [2022] voltou a enfatizar os seus planos de levar o capital a apoderar-se da economia da Ucrânia, com o total endosso do governo Zelensky. No final da reunião, todos os governos e instituições presentes aprovaram uma declaração conjunta chamada Declaração de Lugano. Esta declaração foi complementada por um “Plano de Recuperação Nacional”, que por sua vez foi preparado por um “Conselho de Recuperação Nacional” instituído pelo governo ucraniano.

Este plano advoga uma série de medidas pró-capital, incluindo “privatização de empresas não críticas” e “finalização da corporatização de empresas estatais” – identificando como exemplo a venda da empresa estatal de energia nuclear da Ucrânia EnergoAtom.

Para “atrair capital privado para o sistema bancário”, a proposta também prevê a “privatização dos bancos estatais”. Procurando aumentar “o investimento privado e impulsionar o empreendedorismo nacional”, o Plano Nacional de Recuperação pediu uma “desregulamentação” significativa e propôs a criação “de ‘projectos catalisadores’ para desbloquear o investimento privado em sectores prioritários”.

Destruir as protecções do Trabalho. A mão britânica

Num apelo explícito para reduzir as protecções ao Trabalho, o documento ataca as leis pró-trabalhadores que ainda restam na Ucrânia, algumas das quais são um resquício da era soviética. O Plano Nacional de Recuperação reclama contra a “legislação laboral desactualizada levando a processos complicados de contratação e despedimento, regulamentação de horas extras, etc.”. Como exemplo dessa suposta “legislação laboral desactualizada”, o plano apoiado pelo Ocidente lamenta que os trabalhadores na Ucrânia com um ano de experiência tenham um “prazo de aviso prévio para despedimento” de nove semanas, em comparação com apenas quatro semanas na Polónia e na Coreia do Sul.

Em março de 2022, o parlamento ucraniano adoptou uma legislação de emergência que permite que os empregadores suspendam os acordos colectivos. Depois, em maio, aprovou um pacote legislativo que coloca a grande maioria dos trabalhadores ucranianos (aqueles em empresas com menos de 200 funcionários) fora da lei laboral ucraniana.

Documentos revelados em 2021 mostraram que o governo britânico treinou autoridades ucranianas sobre como convencer um público recalcitrante a desistir dos direitos dos trabalhadores e como implementar políticas anti-sindicais. Os materiais de treino, reconhecendo que a opinião popular em relação às reformas propostas fosse esmagadoramente negativa, forneceu estratégias de mensagens enganosas para levar os ucranianos a apoiar as reformas.

Ajudar as grandes empresas e os ricos

Enquanto os direitos dos trabalhadores são para remover na “nova Ucrânia”, em contraste, o Plano de Recuperação Nacional visa ajudar as grandes empresas e os ricos reduzindo impostos.

O plano deplora que 40% do PIB da Ucrânia venha da receita tributária, classificando isso como “carga tributária bastante alta” em comparação com o exemplo-modelo da Coreia do Sul. Assim, apela a “transformar o serviço tributário” e a “avaliar o potencial para diminuir a participação da receita tributária no PIB”. Em nome da “integração na UE e acesso aos mercados”, também propõe a “remoção de tarifas e de barreiras para todos os produtos ucranianos”, ao mesmo tempo que apela a “facilitar a atracção de investimento directo estrangeiro para trazer as maiores empresas internacionais para Ucrânia”, com “incentivos especiais de investimento” para empresas estrangeiras.

Nada de apoios sociais

Além do Plano de Recuperação Nacional, a Conferência de Recuperação da Ucrânia de julho de 2022 apresentou um relatório elaborado pela empresa Economist Impact, uma firma de consultoria que faz parte do The Economist Group. Tal relatório (Ukraine Reform Tracker) pressiona no sentido de “aumentar os investimentos estrangeiros directos” de empresas internacionais [e de] não investir recursos em programas sociais para o povo ucraniano.

O relatório Tracker enfatiza a importância de desenvolver o sector financeiro e pede a “remoção de regulamentações e tarifas excessivas”. Apela a uma maior “liberalização da agricultura” para “atrair investimento estrangeiro e encorajar o empreendedorismo doméstico”, bem como “simplificações de procedimentos” para “facilitar a expansão das pequenas e médias empresas” através da compra e investimento em activos estatais”, assim “tornando mais fácil para os investidores estrangeiros entrarem no mercado pós-conflito”.

A guerra como oportunidade 

O Ukraine Reform Tracker apresenta a guerra como uma oportunidade para impor a aquisição [dos recursos ucranianos] pelo capital estrangeiro. “O momento do pós-guerra pode apresentar uma oportunidade para completar a difícil reforma agrária, estendendo o direito de compra de terras agrícolas a pessoas jurídicas, inclusive estrangeiras”, afirma o relatório. “Abrir o caminho para que o capital internacional flua para a agricultura ucraniana impulsionará a produtividade em todo o sector, aumentando sua competitividade no mercado da UE”, acrescenta.

“Quando a guerra terminar, o governo também terá de reduzir substancialmente a participação dos bancos estatais, com a privatização do Privatbank, o maior credor do país, e do Oshchadbank, um grande processador de pensões e pagamentos sociais”, insiste o relatório.

Planos convergentes

É certo que existem políticas pró-capital menos explícitas, propostas por economistas ocidentais semi-keynesianos. Numa compilação recente do Centro de Pesquisa de Política Económica, vários economistas propuseram políticas macroeconómicas para a Ucrânia em tempo de guerra. Os autores enfatizam desde o início que a crise da Ucrânia não é cenário para um programa de ajuste macroeconómico típico, ou seja, para as exigências usuais do FMI, de austeridade fiscal e privatização.

Mas, páginas adiante, fica claro que há pouca diferença entre estas propostas e as da CRU. Como eles dizem, “o objectivo deve ser conseguir uma ampla desregulamentação radical da actividade económica, evitar controlos de preços, facilitar a combinação de trabalho e capital e melhorar a gestão dos activos russos, e outros,  apreendidos e sancionados”.

O domínio da Ucrânia pelo capital (principalmente estrangeiro) será assim concluído, e a Ucrânia pode começar a pagar as suas dívidas e a fornecer novos lucros ao imperialismo ocidental.

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Tradução e subtítulos: Mudar de Vida


Comentários dos leitores

Maria Teresa Franco Alves Da Silva 25/9/2022, 21:00

Artigo informativo importante:

As conclusões da referida CRU, em 2018, teve forte enfase na "Reforma Agraria", por se considerar que a organização e os sistemas do mundo agrário ucraniano eram antiquados e a titularidade estatal das empresas produtivas, garante do adequado aprovisionamento alimentar do mercado nacional e estrangeiro, eram "modelos do passado"
Então, a privatização das empresas agrícolas , foi fortemente contestada pela maioria do povo ucraniano.
Actualmente, e com realidade da guerra, a necessidade de fundos financeiros avultados para a manter com recurso a programas de empréstimo , através do FMI, torna -se evidente que o património agrícola está em risco, pois constitui garantia do serviço de dívida e portanto expostos ao capital das multinacionais ocidentais....
As grandes áreas agrícolas estatais mudarão de titularidade e consequentemente grandes alterações dos padrões de produção, que a população rural em nada poderá interferir, o desemprego consequente da "modernização dos sistemas produtivos" a desenvolver pelo grande capital e a pequena / média propriedade privada existente deixara de ter condições de subsistir ,por deixar de haver condições competitivas nesta grande e trágica alteração do mundo rural.


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