Nem mais um tostão para a Nato!
Urbano de Campos — 27 Abril 2022
A guerra na Ucrânia está a servir de pretexto aos governantes e poderes públicos nacionais para criarem na população uma atitude resignada de aceitação do aumento dos gastos com as Forças Armadas. Primeiro o ministro da Defesa do anterior governo, antecipando-se mesmo ao Orçamento do Estado, depois a ministra da Defesa do novo governo e o próprio primeiro-ministro, agora o presidente da República — vieram dar como inevitável o aumento do orçamento militar e apresentar como inquestionável o empenhamento do país na guerra.
No discurso evocativo do 25 de Abril, pouco importou a Marcelo Rebelo de Sousa que o custo de vida esteja a subir de forma galopante, que a falta de bens se perspective no horizonte próximo, que uma crise económica generalizada venha a instalar-se na Europa, e que, como consequência de tudo isto, a vida da população, em primeiro lugar da população trabalhadora, esteja a enfrentar dias negros. Não, o foco exclusivo do PR foi vender a ideia — debaixo da capa da “valorização” das Forças Armadas — de que as despesas militares têm de aumentar (desde já!) e que a participação de Portugal na guerra é coisa que não se discute.
Nem uma coisa nem outra são aceitáveis ou devem passar sem protesto.
A pretexto de louvar o papel libertador do MFA de há 48 anos, o presidente da República veio travar batalha pelo que de pior há na instituição militar: os gastos, socialmente inúteis, suportados por quem tem de arcar com impostos que não revertem minimamente para o bem comum. Porque é disso que se trata. Marcelo deveria ter dito, em complemento da sua pugna armamentista, que mais dinheiro para as forças armadas significa, necessariamente, menos para os salários, para as creches, para as escolas, para a saúde, para as pensões, para os apoios sociais em geral. Como toda a gente de resto já adivinha. Mas não teve a lisura e a honestidade de o fazer.
Bastaria isto para tornar a discursata do presidente, não só o anúncio de um ataque ao bem-estar (já de si precário) dos portugueses que vivem de salário, como uma completa perversão do que foi o propósito dos capitães de 1974 — e, ainda mais, a negação da onda popular que verdadeiramente consumou o fim do regime fascista.
Mas há mais. Marcelo Rebelo de Sousa pretendeu fazer pedagogia sobre estratégia: disse ele que as nossas fronteiras de hoje não são as das costas atlânticas ou da raia de Espanha, são as da Ucrânia, da Roménia, da Lituânia, etc.— isto é, as fronteiras da Nato no leste europeu. Com isso, quer ele justificar o envio de armas e de tropas para prolongar uma guerra que nenhum português desejou e para colaborar no desafio que o Ocidente faz à Federação Russa.
Marcelo colocou, uma vez mais, o país na dependência das ambições da grande potência norte-americana e dos seus seguidores europeus. Porque a fronteira leste da Nato é a linha avançada da nova guerra-fria promovida pelos EUA. E se tal dependência já é grave em qualquer ocasião, mais grave se torna quando estamos perante uma guerra desencadeada que ninguém sabe quando termina e até que ponto pode ir.
É caso para perguntar que legitimidade têm o PR e o Governo para envolverem o país numa guerra de consequências imprevisíveis, ditada por interesses alheios. É caso também para perguntar que noção de democracia é esta que permite a dirigentes políticos transitórios arrogarem-se o direito de arrastar um país e um povo inteiro para um sorvedouro sem fundo que pode comprometer a vida de gerações.
Diante de um discurso inteiramente ao arrepio dos interesses populares, como foi o de Marcelo (contrariando o sentido da data e avançando planos belicistas), esperar-se-ia que o BE e o PCP não se ficassem por comentários ligeiros — para mais, condescendentes — sem atenderem ao fundo da questão. Quando está em causa o empenhamento do país, pela mão dos seus governantes, numa guerra que só interessa aos EUA, os dirigentes da esquerda parlamentar optaram por fingir não entender o nó da questão. Acharam até que foi o momento “absolutamente certo” (Catarina Martins) para o presidente falar das Forças Armadas e que a abordagem de Marcelo “foi um sublinhado importante” (Jerónimo de Sousa), apenas com o defeito de não ter focado os assuntos salariais e de carreira dos militares…
Uma das palavras de ordem que emergiram espontaneamente na onda popular de 74 foi “Nem mais um tostão, nem mais um soldado para a guerra colonial”. Nela se resumia a vontade da massa popular de pôr fim imediato a treze anos de sacrifícios, inflação e mortes, indo ao encontro da grande luta dos povos então colonizados. Foi esta decisão popular que retirou espaço às manobras neocolonialistas da Junta de Salvação Nacional spinolista e que encaminhou os capitães para uma descolonização sem condições.
A crise económica que então se vivia sacrificava duramente as classes trabalhadoras. A entrada em acção destas classes não se limitou porém às reivindicações salariais e materiais, apesar da sua premência. A luta ganhou de imediato um sentido político — e foi isso que deu força extraordinária quer às reivindicações mais básicas e imediatas, quer às transformações sociais, políticas, institucionais que viriam a ocorrer no ano e meio seguinte. Hoje, igualmente, não será possível arrancar concessões, salariais ou outras, significativas sem que seja atacado o rumo político que as classes dirigentes dão ao país, com particular relevo neste momento para o alinhamento na guerra que está em curso.
O comportamento dos sindicatos será decisivo, sabendo-se de antemão que vão ser os trabalhadores a pagar todos os custos, políticos e materiais, resultantes da via para que o país está a ser empurrado. Como as coisas estão colocadas, não são apenas as questões dos aumentos salariais que exigem resposta massiva — são também as questões de ordem política ditadas pelas opções dos governantes, ao seguirem a reboque dos EUA e da Nato.
Cada euro de despesa militar a mais será um euro a menos no lado dos trabalhadores. Cada equipamento militar embarcado para o teatro de guerra será uma ajuda ao prolongar do conflito — não uma ajuda à população ucraniana mas aos que estão interessados no arrastar do conflito, os EUA e a Nato. A consigna de 74 ganha assim nova actualidade: Nem mais um tostão, nem mais um soldado para a Nato!
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgoncalves 29/4/2022, 15:02
Este texto infelizmente não encontra eco em quase ninguém. A NATO que foi repudiada, pelos povos dado o seu carácter bélico e agressivo, ao ser criada em 1949 emcontra nos nossos dias um apoio geral impressionante. Vejamos onde podem chegar a força da Russia moderna e a Rep. Popular da China. Os sindicatos nos dias de hoje estão confinados a reinvindicações laborais e dai não passam.