Notas sobre o sentido das últimas eleições europeias
Manuel Raposo — 18 Julho 2014
Os muitos comentários e análises feitos à eleições europeias de Maio esgotaram praticamente todas as avaliações acerca da distribuição dos votos e o que isso significa para cada uma das forças concorrentes. Mas nesta contabilidade das árvores perde-se, na maior parte das vezes, o aspecto geral que a floresta, através do acto eleitoral, revela agora ter. Na verdade, o que mudou de facto no panorama das classes sociais na Europa? Dois factores são primordiais para se perceber a situação: o enorme nível de abstenção e a gradual cisão do eleitorado de centro.
1. Os lamentos dos partidos “centrais” acerca da deslocação de votos para os “extremos”, e dos decorrentes “perigos do extremismo”, esconde mal a realidade. Em termos globais, face a 2009, mantém-se o nível da representação dos partidos do poder (centro e direita) no Parlamento Europeu, mas com deslocação de boa parte do eleitorado do centro e da direita para a extrema-direita.
A responsabilidade desta evolução só pode ser assacada aos próprios partidos do poder. Foram eles os batedores que abriram caminho à extrema direita, ao encarregarem-se da tarefa de esmagar as aspirações das classes trabalhadoras, ao destruírem boa parte das suas condições de vida e de trabalho, sobretudo desde que a crise económica rebentou em 2007-2008.
Prova disso mesmo está na adopção, por parte de diversos partidos do poder, de muitas das exigências levantadas pela extrema-direita, nomeadamente o reforço da repressão e as medidas contra os imigrantes.
E não se pode esquecer, tão-pouco, que o apoio dado pelos democratíssimos governos europeus aos nazis ucranianos — não só para derrubar um governo democraticamente eleito (pelas regras vigentes na UE), mas também para integrar no novo poder esses mesmos nazis — significou um passo importante para mostrar ao eleitorado da UE as frágeis fronteiras que separam uns de outros.
2. A enorme abstenção que se verificou em quase todos os países (57% na média europeia, 65% em Portugal), mais os votos nulos e brancos, é o outro efeito dessa mesma política de liquidação dos interesses sociais da grande massa da população, em primeiro lugar da massa trabalhadora.
A linha dita de austeridade anula de facto qualquer expectativa popular de igualdade, de progresso social ou sequer de manutenção do estado das coisas. Tudo promete caminhar para pior se se mantiver a política seguida nos últimos anos.
Que razões têm então os eleitores das classes trabalhadoras e das camadas médias inferiores para acreditarem no sistema político e na conversa das classes dominantes? Aqueles que não vêem alternativa viável em nenhuma das outras forças políticas, e são cada vez mais, voltam costas a um regime desacreditado, abstendo-se, ou votando nulo ou branco.
3. A perda de votação das forças do centro, que em certos casos chegaram ao ponto de dissolução, é o eco do afundamento das classes médias.
Os seis para sete anos que a crise já leva, além de empurrarem para a miséria grande parte do proletariado, desgastaram o poder de compra, rebaixaram o nível social e cortaram as aspirações de progresso de parte das classes intermédias, sobretudo as assalariadas. Foram estas forças que historicamente deram aos partidos de centro — mais à direita ou mais à esquerda — o papel dominante que tiveram na governação da Europa Ocidental desde 1945.
Fustigada pela crise, a massa constituída por essas classes cinde-se — uma parte aposta na extrema-direita, na esperança de ver protegidos alguns privilégios ou de se ver defendida contra males maiores; outra parte (talvez por enquanto a maioria) abstém-se, descrente da possibilidade de ter os seus interesses defendidos pelo actual sistema de poder; outra parte ainda (certamente a minoria) desloca-se para a esquerda.
4. Contra o que sugere a ideia de um extremar de posições, não houve uma deslocação simétrica do eleitorado para a esquerda e para a direita.
Em termos globais, o crescimento da extrema-direita foi superior ao da esquerda, confirmando de resto uma tendência que vem de trás. O caso é ainda mais grave se por esquerda entendermos as forças que levem a cabo uma política de classe anticapitalista.
Esse reforço da direita não resulta apenas da deslocação das classes médias, mas também de um efeito de arrasto sobre parte do proletariado. Desprovido de uma política de classe, anticapitalista — que o levasse a pensar para além do sistema social em que mal sobrevive — pensa e age afinal como as classes médias, ou como a burguesia que o cavalga, em muitos casos cativado por ideias racistas e nacionalistas.
5. É aqui que a presente crise tem de entrar em linha de conta para a análise da situação. Normalmente só se fala da crise pelo seu lado económico ou financeiro. Mas ela é, antes de mais, a crise do sistema social capitalista, que se revela na incapacidade para responder às necessidades colectivas, na pioria contínua das condições de vida da maioria, no abandono das promessas de ascensão social, no agravamento visível das desigualdades.
Em tais condições, é inevitável que uma crise social acompanhe a crise económica, dando lugar a uma nova arrumação das classes sociais. Igualmente inevitáveis e imediatos são os efeitos políticos: todo o sistema partidário, eleitoral, institucional entra em degradação. À medida que a crise se prolonga, vai ficando mais à vista a natureza antipopular do Estado e das instituições, a ineficácia do sistema partidário em representar os interesses dos de baixo. O sistema político mostra ser incapaz de traduzir os interesses das diversas classes, a não ser os da fracção dominante das classes dominantes.
Entender isto é decisivo para responder à crise naquilo que ela de tem de mais essencial: o abalo que todo o edifício social está a sofrer. A esquerda que se move dentro deste sistema, contenta-se com os ganhos eleitorais que possa ter, ou promete corrigir “erros” se perde votos, lamenta os efeitos negativos da abstenção no regime democrático e propõe-se “melhorá-lo” — mas escapa-lhe o lado positivo disto tudo: a decomposição do próprio sistema capitalista que está em curso e que é irreversível.
6. No nosso caso nacional, temos de nos colocar perante estes factos:
— quase 73% do eleitorado virou costas a todas as forças partidárias (65,33% abstenções, 3,06% nulos, 4,42% brancos);
— o regime político foi legitimado apenas por 27% dos eleitores e o “arco do poder” (PSD, PS, CDS) por menos de 16%;
— os partidos do governo perderam, face a 2009, quase 520 mil votos, sem dúvida em resultado da política antipopular dos últimos três anos; mas, nem de longe, esse eleitorado foi ganho pela esquerda;
— o PCP e o BE, as duas principais forças comunmente identificadas como da esquerda, perderam, em conjunto, mais de 195 mil votos, face a 2009, apesar da subida do PCP.
Os ganhos à esquerda foram portanto muito menores do que as perdas do governo e muito menores ainda do que seria de esperar depois de três anos de ataque às condições de vida e aos direitos da população trabalhadora. É por esta bitola que os resultados, inevitavelmente, têm de ser julgados.
7. O colapso do BE (menos 232 mil votos), parecendo confirmar o trajecto das anteriores eleições, traduz o esgotamento de uma linha social-democrata que se colocou à esquerda do PS e que procurou beneficiar das pendulares deslocações do PS para a direita, sobretudo quando era governo. Mas na situação mais dura de uma crise como a que se vive, as exigências da luta política são outras: sem ter criado raízes significativas nas massas trabalhadoras, o BE vê agora a fragilidade dos seus ganhos eleitorais passados.
O magro sucesso do PCP (mais 37 mil votos) mal capitaliza os protestos de massas dos últimos três anos. Este resultado, sendo positivo no estrito plano partidário, mostra contudo que o PCP não consegue mobilizar a maioria da massa trabalhadora, nem, portanto, constituir uma barreira à ofensiva da direita. Não porque não tenha sabido animar as acções de resistência dos trabalhadores e de diversos sectores da população, mas porque confina essas acções à reclamação de valores democráticos (nacionalistas e patrióticos), abdicando de lhes dar o sentido de uma luta anticapitalista, virada contra o sistema político e contra o regime. Só este sentido anticapitalista poderá reanimar a luta de classe dos trabalhadores.
8. Os resultados eleitorais mostram que luta de massas precisa de um novo fôlego sem o qual não conseguirá opor uma barreira eficaz à avançada da direita. Isso só poderá acontecer direccionando as acções de protesto dos trabalhadores contra o regime social. Só esse sentido de classe dará aos trabalhadores a certeza de estarem a travar uma luta sua, por interesses próprios, que mereça a sua plena adesão e sacrifício. Não apenas uma luta contra as desigualdades e as injustiças, mas também um combate contra o próprio sistema de exploração e a sua máquina de poder.