O que é uma esquerda que não seja anticapitalista?

João Bernardo — 2 Junho 2008

Lembro-me de que há uns vinte ou trinta anos encontrei numa revista norte-americana dedicada a chefes de empresa uma publicidade constituída por uma série de fotografias da mesma pessoa, que iam progressivamente ficando menos nítidas. Debaixo de cada imagem estava uma temperatura, de modo que o rosto mais nítido correspondia, creio eu, a 21 graus e a última imagem, uma espécie de rectângulo de nevoeiro, correspondia a 42 graus. A toda a largura da página estava a frase: “Acima de 35 graus os seus trabalhadores evaporam-se”. Tratava-se de um anúncio de ar condicionado para instalações industriais, destinado a recordar aos patrões que a produtividade aumenta se a temperatura se mantiver agradável, mas as implicações sociais e políticas daquela publicidade são mais vastas.

Os capitalistas podem obter lucros deixando em condições infra-humanas uma mão-de-obra paupérrima, e ninguém ignora que há grandes fortunas nos países mais pobres, mas não é isto que distingue a economia moderna. Em todos os regimes anteriores a miséria das multidões coexistiu com a opulência de uns poucos. O que singulariza o capitalismo é a capacidade de lucrar − e muitíssimo − com a melhoria das condições materiais de vida dos trabalhadores. O capitalismo é um sistema de exploração assente na produtividade do trabalho, e todas as aparentes regalias que aumentarem essa produtividade destinam-se directamente a aumentar os lucros.

O governo de Sócrates tem servido para reorganizar as condições de exploração em Portugal de acordo com o que se passa no resto do mundo, precarizando o trabalho, introduzindo critérios estritos de mercado no ensino, na saúde e nos transportes públicos, colocando o consumo na dependência directa do crédito. Mas até onde poderá ir neste caminho? Não correrá o risco de, como naquela publicidade, o trabalhador se evaporar? Ou definhar? Ou, já agora, se revoltar e decidir mudar de vida?

Francisco Louçã está a assumir a função de termómetro quando pede a Sócrates que tenha “sensibilidade social”, e o mesmo fazem, em coro, as personalidades que convocaram o comício de 3 de Junho. Em termos claros, trata-se de avisar o primeiro-ministro de que o seu governo se arrisca a ir longe demais, e não de contribuir para organizar e impulsionar os descontentamentos e as indignações que proliferam desgarrados.

Afinal, o que é uma esquerda que não seja anticapitalista? É o termómetro da produtividade.


Comentários dos leitores

António Alvão 10/6/2008, 14:18

João Bernardo, eu gostaria muito de saber qual é uma boa esquerda anticapitalista, que é para eu aderir à mesma. Não me podes ajudar nesse sentido?

João Bernardo 25/6/2008, 1:45

Caro António Alvão
Eu conheço uma esquerda anticapitalista. Tenho militado nela desde há várias dezenas de anos e em vários países. Agora, o que não sei é se ela é boa ou se é assim-assim.

António Alvão 2/7/2008, 15:16

Amigo João Bernardo, essa tal esquerda anticapitalista, que eu ainda não sei qual é, onde dizes militares nela há varias dezenas de anos, e em vários países e ainda não sabes se ela é boa ou assim-assim? Estás com dificuldade? (Risos) Desculpa lá.
Um abraço.


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