O que pretende de facto a nova lei eleitoral autárquica?
Filipe Dias, autarca — 1 Fevereiro 2008
O que o PS e o PSD pretendem com a nova Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais é dar os primeiros passos no sentido de transformar o actual regime político num regime de bipartidarismo, em que só têm importância os partidos do centro. À semelhança dos últimos anos da monarquia, procuram instituir algo semelhante ao que ficou conhecido como o rotativismo, em que o Partido Regenerador alternava no poder com o Partido Progressista. E, quando fora do poder, os mesmos revezavam-se nas mordomias e nos privilégios dos cargos nas instituições públicas, com a Companhia Geral do Crédito Predial Português, transformada em sofá e símbolo do “Bloco Central do rotativismo”. Na ausência de apropriadas fundações ou de um qualquer cómodo gabinete de estudos ou agência governamental (coisas para outras épocas), havia que agarrar o que estava “à mão”.
A este propósito escreveu na altura João de Deus no poema Eleições, publicado em Campo de Flores:
Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei governo novo,
Logo o povo é do governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graças a esta harmonia,
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O governo, o ministério
Ganha sempre as eleições
Por enorme maioria!
Havendo tantas facções,
É realmente um mistério!
Esta realidade histórica parece querer repetir-se com a reivindicação do chefe do PSD (Luís Filipe Menezes) de atribuição da direcção da Caixa Geral de Depósitos a um seu correligionário, ao que, solicito, correspondeu o chefe do Governo com a respectiva nomeação.
A argumentação desenvolvida no preâmbulo do projecto de lei procura apresentá-lo como sendo uma actualização do actual sistema eleitoral autárquico, “um passo significativo para a modernização da administração territorial autárquica” e “para a qualificação da democracia local” (esta é um mimo).
Todavia, nenhum destes argumentos cola com a realidade, pois com a actual doutrina eleitoral pelo método de Hondt, 89% dos municípios portugueses são administrados em regime de maioria absoluta, e somente 11% não são dirigidos desta forma.
De facto o que o que se pretende?
A Câmara deixará de ser eleita pelo voto directo dos cidadãos, pois passará a haver apenas uma lista para a Assembleia Municipal, cabendo ao cabeça de lista do partido mais votado desempenhar as funções de Presidente da Câmara, ficando automaticamente esse partido com a maioria absoluta na vereação – mesmo que alcance na votação para a Assembleia Municipal apenas mais um voto.
Estamos em presença de uma grave deformação do princípio da proporcionalidade eleitoral e de um retrocesso do pluralismo na representatividade local. Os votos deixam de ser todos iguais, pois passam uns a valer mais do que outros.
Para além do que é inicialmente denunciado neste artigo, o que a nova lei procura é, acima de tudo, dificultar o controlo e fiscalização dos actos dos executivos camarários, ao limitar ou, pura e simplesmente, arredar a oposição de lugares na vereação. Nem o argumento do reforço de poderes das assembleias municipais pode merecer quaisquer créditos, pois todos sabemos a falta de meios e condições de que as assembleias municipais dispõem para exercer a sua fiscalização.
Os poucos casos de denúncia de corrupção e de troca de favores e de transferência de bens públicos para a esfera privada deram em nada. Quem ainda se lembra das revelações do ex-vereador do urbanismo do município do Porto, Paulo Morais, onde este, em entrevista dada ao “Diário Económico”, procura explicar como o urbanismo se tornou numa forma dissimulada de transferir bens públicos para entidades privadas e uma forma oculta de financiamento partidário?
Se, com a actual lei, as coisas já são o que são, com o afastamento das oposições dos executivos autárquicos fica o caminho livre para toda a espécie de arbitrariedades e manigâncias. Sem o crivo da crítica e da vigilância estamos próximos de tempos de fartar vilanagem e autêntico regabofe.
Tal como o rotativismo do período monárquico significou o início da sua decomposição, este que agora nos pretendem impor não deixa de ser igualmente fétido.
Curiosamente, José Luciano de Castro, em plena Câmara dos Deputados, respondendo a Fontes Pereira de Melo, declarou: é necessário que se organizem dois partidos, somente; um – mais ou menos conservador, e outro – mais ou menos avançado (13 de Janeiro de 1871).
Qualquer semelhança com o presente é pura coincidência, dizemos nós.