Morreu o precursor da guerra privada

José Mário Branco — 23 Outubro 2007

O mais célebre mercenário da era pós-colonial, Bob Dénard, morreu aos 78 anos, vítima da doença de Alzheimer. Nascido em Bordéus com o nome de Gilbert Bourgeaud, serviu a marinha de guerra francesa na Indochina e depois a polícia de Marrocos, então ainda uma colónia da França. Aí foi preso por participar numa conspiração para assassinar o primeiro-ministro socialista Pierre Mendès-France. Anti-comunista convicto, a sua vida, que os jornais qualificam de “aventurosa e colorida”, foi uma sinistra sequência de assassinatos, golpes e exacções ao serviço dos piores clientes: a África do Sul racista; o cérebro da espionagem colonial de De Gaulle, Jacques Foccart; o regime reaccionário de Tshombé que se revoltou no Katanga para derrubar Lumumba (aqui com a ajuda da Pide salazarista); os golpes contra Nasser financiados pela Arábia Saudita; etc. Finalmente, acabou por tomar conta das Ilhas Comores (perto do Canal de Moçambique), de onde lançava ataques contra as recém independentes Angola e Moçambique.

A braços com vários julgamentos em França, Dénard acabou sempre por ser protegido pelos serviços secretos franceses, tradicionalmente dominados por ex-militares fascizantes.

Mas ele foi, afinal, apenas um precursor da privatização da guerra e da repressão, hoje bem visível nos Estados Unidos. No Iraque, o governo e as petroleiras dos EUA têm mais de 100.000 mercenários, contratados a empresas privadas como a Blackwater. Dois tipos de serviços lhes são normalmente confiados: a protecção pessoal e os serviços mais sujos de assassinatos, bombas e provocações. As prisões privadas estadunidenses, construídas e geridas por empresas como a CCA e a Wackenhut, detêm já dezenas de milhares de presos a mando dos tribunais e facturam ao Estado um xis por cada um… (claro que os “castigos” dos presos são prolongamentos da pena, excelente maneira de carregar a factura!).

Se repararmos bem, esta privatização da força repressiva, indústria em grande desenvolvimento nas últimas décadas, quase sempre por iniciativa de ex-militares, também se passa debaixo dos nossos olhos, à nossa pequena escala. Já não nos admiramos quando vemos por todo o lado – empresas, serviços do Estado, escolas, hipermercados, transportes de valores, estádios de futebol, etc. – a segurança ser confiada a essas empresas que, no fundo, se limitam a fazer o trabalho que antes era dos polícias, dos guardas e dos militares.

Afinal, o assassino profissional Bob Dénard foi apenas, nos anos 60 e 70, um precursor desta tendência natural do capitalismo para o negócio da morte. “Empreendedores” como outros quaisquer.


Comentários dos leitores

samuel 26/10/2007, 12:57

Comentar o qué Zé Mário?!
Está tudo no texto.
Digo, talvez que doenças "lentas" como o Alzheimer, deviam em casos excepcionais, atacar aos 20 anos e de forma fulminante.
Isto "se Deus fosse eu..."
Abraço.


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