Ver as origens políticas dos atentados de Paris
Manuel Raposo — 22 Janeiro 2015
“Loucos”, “fanáticos”, etc. são os nomes mais comuns dados aos autores dos atentados de Paris pelos governos europeus, seguidos por grande parte da opinião pública. A “irracionalidade” seria portanto a marca da acção destes “extremistas” que não teriam outro objectivo senão destruir a “civilização ocidental”, pelo ódio que os mobilizaria contra a liberdade e a democracia.
Na verdade, este é o caminho mais curto para evitar a pergunta crucial: quais são as motivações políticas dos atentados?
É esta a questão a que os poderes da Europa querem fugir, porque admitir que haja motivações políticas na origem dos atentados será abrir a porta para julgar o comportamento da União Europeia (bem como dos EUA) em relação ao mundo árabe e muçulmano.
De resto, o alibi do “fanatismo” ficou a descoberto quando as polícias de praticamente todos os países da UE, na sequência dos atentados, lançaram o alerta contra o perigo dos “jihadistas” e desencadearam — para já, em França, na Bélgica e na Alemanha — uma verdadeira caça ao árabe e ao muçulmano (causando a morte de “suspeitos”, sem outras provas que não sejam as fornecidas pela polícia) com base no argumento de que essas comunidades seriam albergue de redes de militantes “islamistas”. Afinal, as razões políticas, sejam elas quais forem, existem…
Não esquecer o pano de fundo
Efectivamente, não pode haver dúvidas de que o pano de fundo das diferentes formas de luta desencadeadas pelos povos árabes e muçulmanos é a guerra que lhes é movida por europeus e norte-americanos, em regiões tão vastas como o Médio e Próximo Oriente, ou a África do Norte e Central. Essa guerra desenrola-se no solo dos seus próprios países com efeitos devastadores nas populações. E, não menos importante, atrás dos acontecimentos dos últimos anos há um longo rasto de décadas e mesmo de séculos de exploração e de dominação pelo colonialismo e pelo imperialismo.
É bom não esquecer que vários desses países, como o Afeganistão e o Iraque, foram invadidos e estão ocupados há mais de uma década. A Palestina não tem sequer direito à existência como Estado e foi sendo retalhada, desde há quase 70 anos, por esse intermediário do imperialismo que é Israel. A Líbia e a Síria foram transformadas desde 2011 num caos, em resultado de ataques militares e do financiamento de uma guerra civil sem quartel, ambas as acções promovidas pelos EUA e a UE. O Sudão, a Somália, a Nigéria, o Mali, a República Centro Africana são alvos e teatros de operações militares dos EUA, do Reino Unido e da França. O Egipto é hoje, de novo, uma ditadura militar tenebrosa por obra e graça dos EUA com cumplicidade europeia. Para não falar dos apoios dados por europeus e norte-americanos às ditaduras da Arábia Saudita e demais estados da Península Arábica.
Pensar, pois, que os atentados cometidos nos EUA e na Europa nascem do nada é esquecer tudo isto. Na verdade, o mundo árabe e muçulmano conduz uma guerra de resistência à guerra iniciada pelo imperialismo — e está mesmo, no plano mundial, na frente desse combate. É, de resto, este facto, não admitido publicamente deste modo, que preocupa acima de tudo os governos imperialistas.
Terror e resistência de massas
O Ocidente procura também outro efeito: identificar toda a resistência árabe e muçulmana com os atentados terroristas. Mas os factos desmentem essa manobra.
As chamadas Primaveras Árabes de 2011 foram amplos movimentos de massas, democráticos, dirigidos contra as ditaduras patrocinadas pelo Ocidente. Todos eles — supremo perigo para para o Ocidente! — foram integrados por distintos movimentos dos trabalhadores, como foi sobretudo visível na Tunísia e no Egipto, em que os sindicatos tiveram papel de destaque.
As resistências conduzidas na Palestina pelo Hamas e pela OLP, ou no Líbano pelo Hezbolá, ou no Iraque por diversos grupos laicos e confessionais, ou no Afeganistão pelos Talibã — são movimentos políticos com largo apoio nas populações e é por isso que sobrevivem às investidas de Israel ou do imperialismo.
O terror que o Ocidente imperialista condena, afectando grande estremecimento moral, é um terror específico: apenas aquele que se abate, mesmo de forma esporádica, sobre os seus territórios nacionais. Porque o terror que o imperialismo desencadeia diariamente, das mais diversas formas, como arma de guerra, sobre as populações árabes e muçulmanas que domina, esse, ou é mascarado das populações ocidentais ou é justificado como “medida de segurança” ou “acção preventiva”. Nesta batalha do terror é preciso dizer claramente que o terrorismo desencadeado pelo Ocidente imperialista (levado a cabo pelos respectivos Estados a coberto de uma falsa “legitimidade democrática”) não só precede qualquer outra resposta terrorista, como não é comparável — nem em proporções, nem em meios empregues, nem nos efeitos devastadores — com o terror praticado por quaisquer forças que se lhe oponham.
Religião e política
Para esconder a motivação política das diversas formas de resistência de árabes e muçulmanos, o Ocidente precisa de as juntar no mesmo saco do “Islão radical”, e rotular o islamismo como a encarnação do mal, da violência, do sectarismo, da barbárie, do primitivismo. Mas, para quem não ponha de lado a origem da resistência e a sua natureza política, o Islão surge tão-só como o cimento ideológico que une as massas populares na sua luta. Não é por se invocarem do islamismo, portanto, que a maioria desses movimentos deixam de ser movimentos políticos, isto é, organizações que reúnem à sua volta e mobilizam as populações contra as potências imperialistas.
Além disso, se a religião desempenha hoje esse papel, mais do que desempenhou no passado — em que os movimentos laicos e republicanos, e mesmo socialistas, eram os principais catalizadores das massas árabes e muçulmanas na luta contra o colonialismo — isso também se pode atribuir ao Ocidente imperialista que tudo fez para derrubar todos os regimes que não lhe eram dóceis e decapitar as suas direcções políticas. Foi nesse terreno arrasado que ascenderam os líderes confessionais.
Democracia e liberdade
Regressemos a 2011 e às revoltas árabes que percorreram todo o Norte de África e o Médio Oriente. Qual foi então a resposta do Ocidente — que faz constantes juras de amor à democracia e à liberdade — a esses movimentos que se levantaram precisamente pela democracia e pela liberdade? Tentar sufocá-los. Por uma razão que é fácil de entender: a democracia e a liberdade são princípios válidos (dentro de limites cada vez mais estreitos, aliás) para uso interno das potências imperialistas — mas que elas não aplicam aos povos que se querem libertar da sua dominação.
Ora, as massas árabes, sistematicamente acusadas de serem avessas à democracia e à liberdade — acusadas até de professarem uma religião avessa à democracia! — quiseram em 2011 (como noutras ocasiões) gozar do mesmo privilégio de serem livres e decidirem sobre o regime político que as governasse. Mas cedo viram que não era essa a opinião do Ocidente… “democrático” e “livre”.
Que validade pode então ter, para árabes e muçulmanos oprimidos — não a democracia em geral — mas a concreta democracia praticada nos países ocidentais, se essa democracia for a forma de as classes dominantes imperialistas obterem o aval das suas populações para invadirem, explorarem e destroçarem outros países?
É isto que verdadeiramente está em causa quando na Europa ou nos EUA, a pretexto das acções do Estado Islâmico ou dos atentados terroristas, se clama pela defesa dos “valores da civilização Ocidental”. Com isto, o Ocidente está simplesmente a falar do seu “direito” a dominar árabes e muçulmanos, contra o direito de árabes e muçulmanos a serem livres de decidir sobre si mesmos.
A esquerda perante os factos
Tal como os atentados de Nova Iorque em 2001 ou os de Madrid em 2004, os de Paris colocam sérios desafios à esquerda.
Diante de uma luta anti-imperialista como a que os povos árabes e muçulmanos travam, importa reafirmar que a posição da esquerda anti-imperialista só pode ser a de apoiar a resistência desses povos, no sentido de que eles vençam essa luta. A esquerda sabe também que uma luta dessa natureza só pode ser vencida com amplo apoio e participação activa das massas populares — e não se se resumir à acção “exemplar” de meros destacamentos punitivos.
Por muito que custe a europeus e a norte-americanos, a pergunta decisiva sobre os atentados de Paris é a de saber se eles contribuem para fazer avançar a luta dos povos árabes e muçulmanos contra a dominação imperialista, bem como a luta das populações árabes e muçulmanas imigradas pela igualdade e contra a discriminação. Esse é um julgamento que só os próprios podem fazer.
Neste campo, é significativo que, quer o Hamas, quer o Hezbolá — duas das mais importantes organizações políticas, com amplo apoio de massas, da resistência árabe — tenham respondido negativamente à questão e tenham, por isso, condenado o atentado de Paris. Mas também não deixa de contar o sentimento de muita da população árabe de França que diz, referindo-se aos caricaturistas do Charlie Hebdo, “Eles estavam a pedi-las”.
Considerado tudo isto, a condenação dos atentados de Paris que muitos sectores da esquerda se apressaram a fazer — na cola da vitimização cínica dos governos e das classes dominantes imperialistas, tal como aconteceu após os atentados de Nova Iorque em 2001 — faz tábua-rasa de todo o quadro em que a luta se desenrola. Nesse sentido, favorece a tentativa do Ocidente de aparecer como vítima e não como agressor que é. De facto, precisamente por serem o primeiro agressor neste conflito, as potências imperialistas são as responsáveis pelas retaliações terroristas dadas ao seu próprio terrorismo; são elas que colocam as suas populações à mercê dos actos de guerra que respondem à guerra por elas desencadeada.
Também por isto mesmo, o alvo das populações europeias e norte-americana só pode ser um: pôr fim à política de agressão conduzida pelos governos dos seus próprios países.