Fukushima e a luta de classes
António Louçã — 21 Abril 2011
Começou-se por dizer que a catástrofe de Fukushima não atingiria as proporções de Chernobil. Claro, ficaria mal a um dos países-modelo do capitalismo global ter construído centrais nucleares no enfiamento de terramotos e maremotos. A imprevidência, para encaixar nos padrões vigentes de correcção política, devia ser exclusiva da burocracia soviética. Agora, já se admite que Fukushima pode ter consequências tão graves ou mais que as de Chernobil.
Depois da catástrofe, vieram os remendos. E os de Fukushima não têm sido melhores que os de Chernobil. Mas a nossa imprensa mais entusiástica do “milagre japonês” descobriu agora o seu entusiasmo pelo sentido de organização do país do sol nascente. E vá de louvar a protecção civil japonesa, a solidariedade com as vítimas, os alojamentos improvisados, o estoicismo do “homem da rua”, a simplicidade do imperador que até se dignou dirigir pela televisão uma mensagem ao povo.
No meio deste entusiasmo de neófitos, os propagandistas do novo “milagre japonês” descobriram mesmo a sua veia de poliglotas, certamente com cursos intensivos de japonês técnico devorados à pressa para esta circunstância. E houve até quem quisesse louvar os trabalhadores da protecção civil, que têm levado a cabo os mais diversos trabalhos na área de Fukushima, como “os samurais do nosso tempo”. Ora, com isto ignora-se o que é ciência elementar para o povo japonês, que não compara esses trabalhadores com os samurais e sim com os kamikaze.
Os herdeiros da aristocracia guerreira japonesa não estão hoje a trabalhar entre os destroços de Fukushima, e sim sentados no conselho de administração da Tepco, a empresa que gere a central nuclear e que, para aumentar os seus lucros, tratou de poupar nos custos de segurança. Esses descendentes dos samurais já admitiram negligências clamorosas. Mas, ao contrário dos antepassados, não concluíram as suas confissões em conferência de imprensa com nenhum espectacular hara-kiri. No moderno capitalismo japonês, já ninguém expia as suas culpas com esse tipo de suicídio ritual.
A verdadeira tarefa suicida é aqui deixada a simples trabalhadores, que dentro de poucos meses ou anos poderão morrer em massa, das consequências das radiações, tal como sucedeu em Chernobil. E o povo que lhes chama kamikaze conhece a história dos pilotos suicidas, que eram apenas treinados para descolar e não para aterrar, que eram enviados para o ar em aviões carregados de bombas, apenas com combustível para a ida e não para a volta, e acompanhados por caças que os abateriam se tivessem a veleidade de voltar atrás. Também esses kamikaze eram as vítimas duma guerra imperial que não escolheram fazer.
Os “samurais” que escolheram a guerra e os seus descendentes que decidiram construir as centrais nucleares com risco para toda a população, esses, continuam no poder. Todos somos, provavelmente, ignorantes da língua japonesa. Mas confundir samurais com kamikaze é querer ignorar a luta de classes, para além de qualquer desculpável ignorância linguística.
Comentários dos leitores
•Sérgio 25/4/2011, 22:10
Muito bom!
Parabéns!