Movimento laboral europeu: o legado ideológico do pacto social

Asbjørn Wahl (*) — 29 Abril 2010

pactosocialunion_72.jpgRevisão do Código do Trabalho, redução das prestações sociais, limitação do subsídio de desemprego, despedimentos colectivos e individuais, aumento da idade e redução das pensões de reforma, destruição do Serviço Nacional de Saúde, privatização de serviços públicos, degradação do Ensino, baixa de salários, aumento do horário de trabalho, subida de impostos sobre os assalariados…
Esta sucessão de medidas – que vem desde pelos menos há 20 anos, levada a cabo por governos de todas as cores, em Portugal como na Europa e no resto do mundo – não ilude sobre um facto: o Capital desencadeou uma ofensiva brutal contra as classes trabalhadoras retirando-lhes, palmo a palmo, ganhos materiais e sociais que tinham sido adquiridos pela força do movimento popular e sindical após a Segunda Grande Guerra ou, no caso português, depois do 25 de Abril de 1974.
E também não pode haver ilusões sobre outro facto: a capacidade de resistência dos trabalhadores e das organizações sindicais é escassa para o que está em jogo e por isso não tem sido capaz de travar a ofensiva.
O Capital conduz uma guerra de classe ao Trabalho. O Trabalho só pode vencer essa guerra se fizer pleno uso das suas armas de classe. Onde residem as debilidades que retiram força à resistência dos trabalhadores?
É a esta questão que o artigo do sindicalista norueguês Asbjørn Wahl (publicado originalmente na revista norte-americana Monthly Review, em Janeiro de 2004) procura dar resposta.

O movimento sindical europeu está na defensiva. Está também numa profunda crise política e ideológica. Presentemente, os sindicatos estão incapazes de cumprir o seu papel como defensores dos interesses económicos e sociais imediatos dos seus membros. Perderam terreno em todos os sectores e indústrias. Aquilo que era, no período a seguir à Segunda Guerra Mundial, o mais forte e influente movimento sindical no mundo capitalista está hoje abertamente confuso, falta-lhe uma visão clara e hesita na sua nova orientação política e social.

Ironicamente, as mesmas teorias, análises e políticas que lhe deram força no período do pós-guerra tornaram-se agora um pesado fardo. O legado ideológico do “pacto social” conduz agora o movimento sindical por maus caminhos.

A ofensiva neoliberal

Por trás deste desenvolvimento está a transformação neoliberal em curso nas nossas sociedades. Como este processo não é o tema deste artigo, mencionemos apenas alguns pontos importantes. Nos últimos vinte anos, temos sido confrontados com uma imensa ofensiva das forças neoliberais. Os interesses capitalistas passaram à ofensiva e assistimos a uma enorme mudança no balanço de forças entre o trabalho e o capital. As empresas multinacionais estão, claro, na vanguarda desta evolução. O “pacto social” do pós-guerra entre o trabalho e o capital, a política de coexistência pacífica entre sindicatos e patrões rompeu-se.

O lado do capital retirou-se do pacto social e leva a cabo de forma crescente uma política de confrontação com o movimento laboral organizado.
As tentativas das empresas multinacionais e dos seus servidores políticos para aprofundar e para institucionalizar as suas novas posições de força são parte importante deste movimento. Isto está a ser feito principalmente através de instituições internacionais e acordos como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e por estruturas regionais de poder como a União Europeia (UE). Como estas estruturas são menos democráticas do que os governos locais e estatais, demonstraram ser os mais úteis e eficazes instrumentos para a institucionalização do poder das empresas.

A análise seguinte baseia-se no conceito de que a UE é hoje a via pela qual o modelo económico e social neoliberal se institui na Europa. A UE e outras instituições regionais e supranacionais estão a ser edificadas na base da nova relação de forças e não podem ser modificadas, democratizadas, ou derrotadas enquanto os trabalhadores não forem capazes de alterar a actual relação de forças a seu favor. Uma tal alteração requer que o movimento sindical faça da mobilização das forças da classe operária e populares a sua tarefa de longo prazo.

pactosocialmineirosingleses.jpgNovas condições, velha política

Infelizmente, mobilizar as forças da classe operária não está hoje nos planos do movimento sindical europeu. O paradoxo que o movimento laboral enfrenta está no facto de a maioria dos sindicatos continuar a seguir a política do pacto social quando o ambiente económico e político em que os sindicatos operam se alterou enormemente.

Consideram a chamada globalização não como o resultado de estratégias conscientes e de novas relações de forças e de classes, mas como simples consequência de mudanças tecnológicas e organizativas, uma posição notavelmente parecida com a que expressou Margaret Thatcher quando infamemente disse “Não há alternativa”. O que é preciso, dizem, é transferir a política do pacto social do nível nacional para o nível regional e mundial.

Os seus métodos são o “diálogo social” com as organizações patronais e com as estruturas estatais e supra-estatais, campanhas para a introdução formal de regras laborais (tais como as convenções laborais da Organização Internacional do Trabalho que, entre outras coisas, proíbem o trabalho forçado, garantem os direitos de livre associação e contratação colectiva, e proíbem a discriminação no emprego) nos acordos internacionais de comércio e nas organizações comerciais, bem como a busca de códigos de conduta de responsabilidade social nas empresas e acordos estruturais com as empresas multinacionais. Estes últimos são códigos de conduta desenvolvidos pelas próprias empresas multinacionais de modo voluntário, livre e não obrigatório. Até agora, não tiveram efeito que se note no comportamento das empresas e parecem ter tido como principal objectivo contrabalançar a imagem pública negativa de muitas empresas multinacionais.

Esta estratégia de “diálogo social” é seguida independentemente de uma análise concreta das relações de força e sem reconhecer a necessidade de mobilizar as forças de classe e populares para alcançar a mudança social. Para compreendermos o actual estado de coisas temos de olhar mais de perto para a história do movimento laboral europeu – em particular a política do pacto social, cuja história e impacto são importantes para percebermos a crise política e ideológica do movimento laboral.

O compromisso histórico entre Trabalho e Capital

Durante o século XX, o movimento sindical na Europa Ocidental desenvolve gradualmente uma espécie de acomodação pacífica com os interesses capitalistas. Durante os anos 30, esta acomodação foi primeiro instituída em certas partes da Europa, principalmente no norte, quando o movimento sindical alcançou acordos com as organizações patronais. Depois da Segunda Guerra Mundial, um processo similar ocorreu na maior parte do resto da Europa Ocidental.

Este pacto social entre trabalho e capital formou a base em que o Estado de bem-estar se desenvolveu e em que foram gradualmente melhorados os salários e as condições de trabalho.

Após um período caracterizado por confrontos entre trabalho e capital, as sociedades entraram numa fase de paz social, negociações bipartidas e tripartidas (trabalho, patrões e Estado), e políticas de consenso. Porque levou a importantes melhoramentos em termos de bem-estar, salários e condições de trabalho, esta política ganhou o apoio massivo da classe operária. Como consequência, os sectores mais radicais e anticapitalistas do movimento laboral foram gradualmente marginalizadas. Assim, esta evolução conduziu à despolitização e desradicalização do movimento laboral e à burocratização do movimento sindical. O papel histórico dos partidos social-democratas passou a ser o de administrar esta política de compromisso de classes.

Não admira que as actuais dificuldades que atingem os sindicatos se espelhem nos problemas que os partidos social-democratas da Europa enfrentam.

É importante perceber que esta parceria social entre trabalho e capital foi um resultado da efectiva força dos sindicatos e do movimento laboral. Os patrões e as suas organizações chegaram à conclusão de que não eram capazes de derrotar os sindicatos. Tiveram de os reconhecer como representantes dos trabalhadores e negociar com eles. Por outras palavras, a acomodação pacífica entre trabalho e capital assentava num forte movimento laboral.

Um outro factor importante no período pós Segunda Guerra Mundial foi o capitalismo ter passado por mais de vinte anos de um crescimento económico estável e forte. Isto tornou possível partilhar os dividendos entre trabalho, capital e bem-estar público. Uma parte decisiva do pacto social era a regulamentação nacional do capital e dos mercados. O controlo capitalista era a ordem do dia em todos os países.

Acordos entre trabalho e capital eram feitos de modo ordeiro e pacífico dentro das fronteiras nacionais. Um importante resultado disto foi que o movimento sindical se tornou muito nacionalmente orientado. O internacionalismo no movimento sindical começou a deteriorar-se numa espécie de diplomacia dentro dos organismos internacionais (como a OIT, Organização Internacional do Trabalho) e mesmo em diferentes formas de turismo sindical, com pouca ou nenhuma ligação com as necessidades ou os interesses imediatos dos membros mesmo se alguma da retórica política internacionalista continuou a ser usada.

Apesar da retórica socialista, para o movimento sindical o pacto social significou a aceitação da organização capitalista da produção, a propriedade privada dos meios de produção e o direito dos patrões de conduzirem o processo laboral.

Em troca de ganhos de bem-estar e de condições de trabalho, as confederações sindicais garantiam paz industrial e moderação nas negociações salariais. Dito de forma clara, o estado de bem-estar e condições de vida gradualmente melhoradas foi o que o movimento laboral ganhou em troca da desistência do seu projecto socialista. Hoje podemos concluir que se tratou de um melhoramento de curto prazo num contexto histórico muito específico, que ajudou grandemente a despolitizar e desradicalizar a classe operária.

Um dado importante deste contexto foi a existência da União Soviética e da Europa de Leste. Como apontou o historiador britânico Eric Hobsbawm, este facto ajudou a que os capitalistas no Ocidente aceitassem esse compromisso (1).

Foi na base deste compromisso que as mais importantes reformas e instituições de assistência social foram desenvolvidas durante as três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. O movimento social radicalizado que emergiu da crise económica e social dos anos 30 e da guerra deparou, por outras palavras, com uma estratégia consciente da parte dos seus adversários capitalistas. Eles entraram voluntariamente em pactos sociais e cederam a muitas das exigências sociais e económicas do trabalho para ganharem tempo e amortecer os sentimentos socialistas do movimento laboral.

Observada do ponto de vista favorável de hoje, podemos dizer que esta estratégia corporativa foi bastante bem sucedida. Uma clara divisão de trabalho dentro do movimento laboral foi um assinalável efeito lateral do compromisso de classes. As condições para a compra e venda do trabalho foram reguladas pelo movimento sindical através de negociações, enquanto a segurança social para os desempregados foi controlada pelos partidos social-democratas no parlamento. Isto lançou os fundamentos para uma evolução mais estreitamente economicista do movimento sindical, coisa que hoje enfraquece os sindicatos, tal como os partidos social-democratas mirraram até mesmo das suas primitivas políticas reformistas.

pactosocialcompromisso_72.jpgA ideologia do Pacto Social

Durante a época do pacto social, esta estratégia das empresas parece ter cegado o movimento laboral. Com base na experiência real de vinte anos de melhorias contínuas nas condições de trabalho e de vida, o entendimento comum era de que tinha sido descoberto um caminho de a sociedade trazer progresso social e uma distribuição de riqueza relativamente justa às pessoas sem ter de forçar a luta de classes e as confrontações sociais. Pensava-se que a sociedade capitalista tinha atingido um nível superior de civilização. Através de reformas graduais, o movimento laboral tinha aumentado o controlo democrático da economia. Um capitalismo livre de crises tinha-se tornado realidade.

Não haveria mais crises económicas como a dos anos de 1930, nem desemprego, nem sofrimento social, nem miséria entre o povo. Todos os indicadores sociais apontavam para cima.
Para uma grande maioria no movimento laboral isto era a via reformista para o socialismo – e todos podiam ver que a coisa funcionava!

Estes feitos sociais reais formaram a base material de uma ideologia de parceria social que permanece profundamente enraizada na burocracia sindical europeia. Pessoalmente, eu ouvi esta ideologia ser abertamente expressa pela primeira vez quando tomei parte em acções de formação de base no centro de educação da Confederação Norueguesa de Sindicatos, no começo dos anos 1980. Aprendi aí que o primeiro terço do século XX foi caracterizado por intensos conflitos entre o capital e o trabalho – incluindo greves gerais, lockouts, e o uso de forças policiais e militares contra os trabalhadores organizados em greve. Este foi um período destrutivo que, no final (anos 1930), levou a classe operária a lado nenhum. Só quando esta política de confronto foi abandonada, quando o movimento sindical começou a tomar plena responsabilidade social, que o verdadeiro progresso foi alcançado – na forma de melhores condições de trabalho, melhores salários e reformas sociais. Por outras palavras, os confrontos com o patronato são destrutivos; o caminho em frente é o do diálogo social pacífico. Esta era a lição que o centro de educação dos sindicatos ensinava até ao começo dos anos 1980.

Tal análise era errada então e é errada hoje. Contudo, as consequências deste erro tornaram-se mais perigosas para o movimento sindical na medida em que o pacto social fracassou. Esta análise obscurece que as grandes conquistas em termos de condições sociais e de trabalho, durante o período do compromisso de classe após a Segunda Guerra Mundial, foram os frutos dos conflitos anteriores.

O progresso foi possível apenas porque a classe operária tinha desequilibrado a balança de forças entre trabalho e capital através de confrontos e dura luta de classe durante a primeira parte do século XX (incluindo a revolução russa). Por outras palavras, foram as lutas de confronto do período anterior que tornaram possíveis os ganhos mais tarde realizados através de negociações pacíficas.

A falência do Pacto Social

O compromisso de classes, contudo, era uma construção frágil, uma vez que a sua vida dependia de uma economia capitalista estável com uma alta taxa de crescimento. O compromisso foi gradualmente desgastado com o desencadear de profundas crises económicas no capitalismo ocidental no início dos anos 1970. As crises espicaçaram as forças capitalistas a passarem à ofensiva – entre outras coisas para reduzir custos – atacando os direitos sindicais, os salários e as despesas públicas, minando as próprias bases do Estado social.

Os movimentos sindical e laboral, desradicalizados e despolitizados, foram apanhados de surpresa por esta viragem. Os patrões tornaram-se de repente muito mais hostis à mesa das negociações. As negociações, que antes tinham sido principalmente à volta de melhoramentos em salários e condições de trabalho, passaram a envolver ataques a anteriores conquistas e regulamentações existentes. Como a maior parte da liderança sindical tinha sido impregnada pelo ambiente do compromisso de classe e da paz social, não estava preparada para estes ataques.

No quadro da ideologia do pacto social, a ofensiva neoliberal era simplesmente incompreensível. A burocracia sindical permaneceu passiva e o movimento sindical foi forçado à defensiva. Em muitos países, muitos trabalhadores abandonaram os seus sindicatos em massa, na medida em que os sindicatos se mostravam incapazes de defender os seus interesses.

Assim, os anos 1980 representaram um enorme revés para o movimento sindical, como pode ser visto nas estatísticas sobre o nível de sindicalização (organização da força de trabalho) em alguns importantes países da Europa Ocidental (ver tabela abaixo).

pactosocialtabela.JPG

Os poucos sindicatos que tentaram reagir contra os ataques neoliberais, como fizeram os mineiros britânicos, foram derrotados. No caso britânico, uma das razões da derrota está no facto de a burocracia da confederação dos sindicatos (TUC) ter considerado a acção militante nas empresas uma ameaça para a política de consenso do pacto social maior do que os ataques furiosos das companhias mineiras e do regime de Thatcher.

Muitos anos mais tarde, a TUC admitiu que tinha sido errado não apoiar a greve dos mineiros, mas nessa altura os estragos estavam feitos. E espantosamente, a TUC não alterou o seu apoio ao pacto social.

Com a falência das economias da Europa de Leste, cerca de 1990, a única alternativa ao capitalismo ocidental desapareceu. O capitalismo tinha triunfado em todas as frentes e para os patrões o compromisso com o trabalho já não era necessário. Agora as forças capitalistas podiam perseguir os seus estreitos interesses políticos e económicos com menos inibições. É por isto que o compromisso de classes (ou o modelo do consenso) faliu ou está a falir por toda a Europa Ocidental. As condições históricas e económicas para tal compromisso já não existem, e o mais importante produto deste compromisso, o Estado social, está debaixo de crescente pressão.

Esta análise das relações de forças não é entendida pela ala dominante das actuais lideranças sindicais. Quando a ofensiva neoliberal começou há cerca de vinte anos e os patrões cortaram gradualmente com a política da parceria social, a única resposta que a maioria da burocracia sindical conseguiu dar foi continuar a sua política de consenso.

Alguns sindicatos quase mendigam aos patrões hostis um regresso ao pacto social. Esta política tem sido alimentada pela forte orientação nacional do movimento sindical. Em vez de se reorientarem no sentido de confrontar os agora mais agressivos interesses capitalistas, a estreita orientação nacional e a ideologia da parceria social dos sindicatos conduziram grande parte do movimento sindical a uma aliança com a – e, consequentemente, a uma subordinação à – batalha do capital “nacional” para se tornar internacionalmente competitivo. Na Alemanha, o termo Standort Wettbewerb é usado para significar não apenas as alianças dos sindicatos com as empresas alemãs, mas também o apoio ao Estado alemão na competição da Alemanha com outras nações.

Grande parte do movimento sindical tem sido mais profundamente atraída para os negócios sindicais e os formalismos legais do que para uma mudança no sentido de uma estratégia assente numa análise de classe e numa avaliação das relações de forças. A batalha do movimento sindical alemão pela “unidade do trabalho” durante os meados dos anos 1990 é um bom exemplo desta política de aliança nacional com o patronato.

Esta foi uma proposta para uma renovação formal do pacto social. Foi feita pela Confederação Alemã dos Sindicatos e propôs a aceitação de condições de trabalho mais pobres em troca de segurança do emprego. Foi recusada pelos patrões. No mesmo sentido, a luta, junto da Organização Mundial do Comércio, estreitamente focada na obtenção de níveis laborais mínimos, que os líderes do movimento sindical mundial perseguem nos últimos dez anos, é um excelente exemplo do formalismo legal que se desenvolveu sem uma análise do balanço de forças entre trabalho e capital.

Os burocratas sindicais, tanto no plano nacional como no internacional, continuam a ver-se a si próprios como mediadores entre o trabalho e o capital. Hoje, quando as forças capitalistas estão na ofensiva e provocaram o desenvolvimento de um movimento popular internacional pela justiça e a solidariedade que se opõe à globalização empresarial em curso, o movimento sindical internacional anseia por se definir como uma força de mediação entre este movimento e os interesses empresariais. Isto mesmo foi abertamente expresso quando o terceiro Fórum Social Mundial (FSM) teve lugar em Porto Alegre, Brasil, em Janeiro de 2003 – em paralelo com o Fórum Económico Mundial (FEM) da elite política e económica, em Davos, Suíça. O movimento sindical internacional fez então uma declaração, Democratizar a Globalização: Declaração Sindical ao FSM e ao FEM de 2003, que foi assinada por todos os importantes organismos sindicais internacionais (2). Entre outras coisas, declarava que:

O movimento sindical internacional tem uma mensagem comum para Porto Alegre e Davos. Visão, vontade política e as necessárias capacidades devem ser juntas a nível mundial para alcançar o desenvolvimento e garantir trabalho decente para os milhões de trabalhadores que hoje vivem na precariedade e na pobreza sem perspectivas de um futuro melhor.

Isso requer empenho de recursos e empenho no papel. Requer sistemas de governação que promovam o nosso bem comum, os nossos direitos e democracia. Requer processos efectivamente democráticos e requer diálogo para os tornar realidade. Pressionaremos o FEM para responder à necessidade de globalizar a justiça social. Ao mesmo tempo, contribuiremos no FSM para encontrar abordagens construtivas para democratizar a globalização no interesse de todos os trabalhadores (3).

Quer dizer, a maioria das organizações sindicais internacionais não se considera pertencer ao novo movimento contra a globalização empresarial (4). Consideram este novo movimento politicamente demasiado radical. A Confederação Internacional dos Sindicatos Livres (CISL) ou os Sindicatos Mundiais, portanto, não junta forças com o resto dos movimentos quando vão para o Fórum Social Mundial – levam a cabo as suas próprias conferências e reuniões à margem dos fóruns. Ao mesmo tempo, enviam igualmente delegações de alto nível ao Fórum Económico Mundial. “Sempre conseguimos a maior parte das coisas através do diálogo”, é o refrão constantemente repetido.

Políticas independentes das relações de forças

A completa falta de análise das relações de forças e das condições para a estratégia sindical é também notória no trabalho educacional feito internacionalmente pelos sindicatos. Um certo número de sindicatos e confederações da Europa Ocidental dirigem programas de formação na forma de projectos de solidariedade com sindicatos irmãos da Europa de Leste bem como em países em desenvolvimento. Nestes projectos educacionais, os sindicatos ocidentais disseminam o que consideram ser o seu grande sucesso – o pacto social. Tentam convencer o movimento sindical do resto do mundo das vantagens de irem atrás de um modelo de parceria social. Dadas as actuais relações de forças, este tipo de educação é contraproducente para os sindicatos da Europa de Leste e do mundo em desenvolvimento, que estão debaixo de ataque de patronatos agressivos e que buscam o confronto.

É importante notar que todos os desenvolvimentos descritos acima afectaram os sindicatos da indústria transformadora mais fortemente do que os do sector público e em parte da indústria de transportes. Isto aconteceu porque a indústria transformadora está mais directa e fortemente exposta à competição internacional. Assim o revés dos sindicatos e a viragem política e ideológica para a direita foi mais notória na indústria transformadora do que em qualquer outro sector do movimento.

A desastrosa continuação de uma política de parceria social, numa situação em que a base económica e social para esta parceria se apaga, está hoje a ser seguida pela maioria da burocracia sindical europeia – em particular a Confederação Europeia de Sindicatos (CES).

Assim, nos últimos anos, temos assistido a uma crescente actividade na forma de consultas, negociações, lobbying e do chamado diálogo social entre os assumidos parceiros sociais do mercado de trabalho. O resultado, até agora, tem sido um desenvolvimento de uma burocracia mais reforçada no movimento sindical europeu.

O diálogo social, ou “negociações ao nível da UE”, como tem sido erradamente caracterizado por alguns, é um exercício que não inclui o direito de acção nas empresas. É pois fácil de perceber por que razão os resultados têm sido tão magros.

Ao nível internacional, a CISL é o mais firme defensor da política de parceria social, muito claramente expressa numa declaração em que comenta o Pacto Global das Nações Unidas (United Nations Global Compact). Entre outras coisas, gaba-se de ter publicado uma declaração conjunta com a ONU, usando alguma da mesma linguagem-chave utilizada numa declaração conjunta correspondente da ONU com a Câmara de Comércio Mundial, nomeadamente:

Foi acordado que os mercados mundiais requerem regras mundiais. O objectivo deve ser o de permitir que os benefícios da globalização se espalhem crescentemente a todas as pessoas edificando uma rede efectiva de regras multilaterais para uma economia mundial que está a ser transformada pela globalização dos mercados… O encontro acordou que o Pacto Global deve contribuir para este processo ajudando a construir parcerias sociais de negócios e trabalho. (5)

Ao nível das empresas, os Conselhos de Empresa Europeus (European Works Councils) tornaram-se a resposta da burocracia. Estes conselhos de representantes dos trabalhadores em empresas transnacionais não dão real influência aos trabalhadores, mesmo sendo úteis para reunir informação e estabelecer contactos entre sindicatos.

Os conselhos têm menos influência que instituições similares que se desenvolveram nos países nórdicos e na Alemanha no período do pós-guerra , embora mesmo esses tenham perdido influência real nesses países à medida que as forças do mercado ganharam terreno.

Na Europa, esta linha de diálogo social impotente arrasta o movimento sindical para um beco sem saída. Uma política sindical baseada na mobilização dos seus membros para enfrentar e combater os ataques dos patrões é quase inexistente no plano da UE, mesmo se vemos tendências nessa direcção no plano nacional (em França em 1995 e em Itália em 2002).

O deprimente resultado destas políticas tem sido a aceitação pelo sector dominante do movimento sindical de uma redução passo a passo nas condições sociais e de trabalho. Através de negociações, os sindicatos aceitaram gradualmente uma crescente “flexibilização” do trabalho.

Em diferentes países europeus observam-se recuos nos apoios sociais tais como reduções dos subsídios e das pensões de doença, cortes nos subsídios de desemprego, maiores custos na educação pública, creches, serviços sociais e de saúde, e a abolição dos projectos de habitação não lucrativa. As condições de trabalho pioraram pela minagem das leis e acordos de trabalho, incluindo o enfraquecimento dos regulamentos dos horários de trabalho, da redução do pagamento do trabalho extraordinário, a reintrodução do trabalho por turnos em muitas indústrias, menor segurança de emprego, mais empregos de curta duração, mais uso de mão-de-obra de aluguer e a termo certo, e de negociação mais descentralizada. Um importante efeito desta evolução foi a desmoralização dos trabalhadores e a redução dos trabalhadores sindicalizados, à medida que os sindicatos falhavam na protecção dos seus membros. O crescimento dos partidos populistas de direita é provavelmente o resultado mais perigoso desta política sindical de tolerância.

25agageiro_72.jpgConsiderações estratégicas

O que pode então o movimento sindical fazer para fazer frente à ofensiva global das empresas? Uma coisa é clara: a retórica radical não basta, mesmo se é comum nas reuniões internacionais. As experiências do Primeiro Fórum Social Europeu em Florença, Itália, em Novembro de 2002 servem de exemplo. Aí se ouviram pelo menos dois tipos de posições dos sindicatos. Um veio de grupos não representativos, pequenos e muito militantes. Outro era constituído por representantes de correntes dominantes de sindicatos europeus. Por exemplo, um representante de um sindicato alemão, IG Metall, queria abrir a luta pela semana de 30 horas. Não referiu, contudo, que o mesmo sindicato negociara um acordo com a Volkswagen apenas um ano antes que minou os salários existentes e as condições de trabalho para induzir a empresa a abrir uma nova fábrica na Alemanha e não num país do Leste europeu com baixos custos. Nenhum dos representantes destes sindicatos respondeu aos verdadeiros problemas de hoje do movimento sindical na Europa. É necessário fazê-lo como base para desenvolver uma estratégia sindical viável.

A primeira coisa necessária é compreender que as políticas de confronto das companhias multinacionais e outros interesses capitalistas têm de ser enfrentadas cara a cara pelos sindicatos.

Existem discordâncias e contradições acerca desta posição entre o movimento sindical – tanto a nível nacional e local como a nível internacional. Aqueles que nos sindicatos querem revitalizar as suas organizações terão de construir novas alianças baseadas nos melhores sectores do movimento. Mesmo havendo excepções, estas organizações laborais encontram-se principalmente no sector público, nos transportes, em alguns sectores privados de serviços e num certo número de ramos locais do movimento sindical.

Para confrontar as empresas transnacionais é preciso criar redes de contactos e encorajar a cooperação entre trabalhadores das mesmas indústrias através das fronteiras nacionais ou de empresa. O desenvolvimento de solidariedade internacional numa base de classe terá de quebrar a tendência do sindicalismo de empresa que favorece “a nossa” empresa contra a “deles”. Esta é uma tendência que tem uma tradição mais forte no movimento sindical dos EUA do que na Europa, mas tem sido reforçada também na Europa nos últimos vinte anos, à medida que sindicatos despolitizados e desradicalizados juntaram forças com “os seus” empregados para proteger empregos no plano nacional – em competição com empresas de outros países. Esta estratégia estreita e mal direccionada tem de ser substituída por uma luta conjunta assente numa base de classe em que o controlo democrático da produção e da distribuição seja posto em primeiro plano.

Outra importante luta em torno da qual tem de ser constituída uma nova aliança sindical internacionalista é a luta contra o controlo dos serviços públicos pelas empresas privadas. Isto significa combater a privatização e defender as conquistas obtidas com o Estado social. O controlo destes sectores da sociedade pelas empresas representa um elemento muito importante da alteração da relação de forças entre trabalho e capital nas nossas sociedades.

Outra importante parte de uma estratégia sindical progressista é desafiar as ideias dominantes da burocracia sindical – a ideologia da parceria social e a acomodação pacífica entre trabalho e capital. Teremos de travar difíceis mas fraternais discussões internas sobre este assunto particular dentro do nosso movimento. Estas discussões deveriam basear-se no entendimento de que a política de parceria social não é o resultado de conspirações ou de traição, mas o resultado de um desenvolvimento histórico específico.

Precisamos de novas análises que possam explicar às pessoas como é que o compromisso histórico entre o trabalho e o capital foi concebido e porque se desfez. O descontentamento do povo com a evolução actual tem de ser tomada a sério; a sua ansiedade e insatisfação devem ser politizadas e canalizadas para lutas sindicais e políticas, pelas suas condições de trabalho e de vida, com carácter de classe. Esta é a única maneira de impedir que estas pessoas sejam mobilizadas por partidos populistas de direita.

Devemos concentrar-nos nas condições de vida e de trabalho na brutalização do trabalho que está a ter lugar à medida que uma parte crescente da economia fica exposta à competição do mercado, e na redução da influência dos trabalhadores sobre o seu dia de trabalho e do seu controlo sobre o processo de trabalho.

É importante perceber que isto também tem muito a ver com a autoconfiança das pessoas. A dignidade dos trabalhadores está a ser sistematicamente atacada – nos locais de trabalho, nos meios de comunicação, nos debates públicos de todo o tipo, e no clima cultural de uma sociedade dominada pelo pensamento e valores burgueses e pelas políticas neoliberais.

Isto só pode ser alterado fazendo apelo às noções de trabalho produtivo, relacionamento de classe e identidade de classe. Não pode, porém, ser imposto às classes trabalhadoras a partir de fora. Tem de ser desenvolvido como uma parte, e ao longo, da luta social.

Finalmente, temos de construir alianças com o novo movimento mundial contra o neoliberalismo – pela democracia, a justiça global e a solidariedade. Este movimento de movimentos mundial é hoje mais politicamente radical e crítico do sistema do que os movimentos sindicais e laborais, mesmo se a sua percepção das relações de classes é bastante pobre. O movimento sindical precisa do radicalismo e da militância deste movimento popular para poder quebrar as ilusões acerca do compromisso de classes. Se esta aliança for desenvolvida de forma construtiva e correcta, os dois movimentos podem reforçar-se mutuamente e levar a luta a um nível mais elevado.

O pacto social nunca foi um alvo definido do movimento laboral; ele foi o resultado de um desenvolvimento histórico específico. Tornou-se possível como o resultado de uma enorme mudança no balanço de forças entre trabalho e capital. A combinação resultante da Revolução Russa, de um forte movimento laboral e sindical no Ocidente, de fortes movimentos de libertação no terceiro mundo e de um longo período de crescimento económico estável da economia capitalista após a Segunda Grande Guerra foram as pré-condições específicas que tornaram possível um período relativamente estável de compromisso social. Procurar um novo compromisso de classes, um novo pacto social, sob as actuais condições de poder muito menos favoráveis, é uma ilusão.

O nosso alvo, portanto, tem de ir para além do pacto social e do Estado providência. Só uma transformação da sociedade suficientemente profunda para remover as condições materiais de uma restauração das políticas neoliberais pode salvaguardar os interesses da população trabalhadora. Nada menos que o socialismo pode garantir isso.

asbjornwahl_72.jpg(*) O autor é funcionário do Fagforbundet (um sindicato norueguês dos trabalhadores dos sectores municipal e da saúde) e vice-presidente da Secção dos Trabalhadores dos Transportes Rodoviários da Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes (ITF). É também o coordenador nacional da Pelo Estado Social, uma aliança nacional baseada nos sindicatos que luta contra a privatização e a desregulamentação e para proteger as conquistas sociais do Estado de bem-estar social.

Notas
1. Eric Hobsbawm – A era dos Extremos. Breve história do século XX 1914-1991.
Lisboa: Editorial Presença, 1996.
2. Estes incluíam a Confederação dos Sindicatos Livres, a União Mundial das Federações, o Comité Consultivo dos Sindicatos para a OCDE, a Confederação Mundial do Trabalho e a Confederação Europeia dos Sindicatos.
3. Ver www.icftu.org/displaydocument.asp?Index=991216994&Language=EN.
4. Há excepções. Em particular a Internacional dos Serviços Públicos, a organização internacional que engloba os sindicatos nacionais do sector público, desempenhou um importante papel no movimento do Fórum Social Mundial, particularmente junto da
Organização Mundial do Comércio através da rede O Nosso Mundo Não Está à Venda
(www.ourworldisnotforsale.org). Um número crescente de sindicatos nacionais e ramos locais estão gradualmente a envolver-se mais fortemente com o novo movimento mundial por justiça e solidariedade.
5. “Declaração da CISL sobre o Pacto Global”, www.icftu.org


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