Morte não é anomalia, anomalia é não pagar a renda de casa
Manuel Vaz — 6 Novembro 2009
Aconteceu em Poissy. José Gomes Macedo, 62 anos, português imigrado em França, operário da construção civil, apareceu morto em casa. Apenas deram por ele dois anos depois de ter morrido.
Poissy lembra imediatamente Peugeot, o grupo PSA Peugeot Citroën. Uma cidade na cidade: 180 hectares onde se fabricam 1500 automóveis por dia, onde trabalham 12 mil assalariados. Ao redor, as torres e as bandas de alojamentos sociais HLM para os operários da fábrica, desterrados dos quatro cantos do mundo. De permeio muitos imigrantes portugueses.
Poissy lembra o bafio e a indefinível tristeza das tardes preguiçosas de domingo, entrecortadas pelos desafios de futebol. A equipa da casa é a equipa do patrão: o FC Sochaux criado em 1928 por Jean-Pierre Peugeot num canto da fabrica, lá prós lados da forja ao abandono. Uma equipa para ocupar honestamente o lazer dos operários, o que não a impediu de vir a ser a primeira equipa de futebol profissional do país e de ganhar o campeonato da primeira divisão de 1934-35.
Nos nossos dias, a aliança indústria automóvel & futebol conhece altos e baixos, forja novas alianças, mas não esmorece, os adeptos de futebol estão em contínua expansão e o Estado ampara o grupo e o todo o sector para os ajudar a enfrentar a crise…
Poissy lembra a fervorosa família protestante dos Peugeot ligados desde o início do século XIX à metalurgia. Nos finais do mesmo século, os Peugeot, agora engenheiros formados na célebre Escola Central, estavam à cabeça das aplicações da metalurgia à indústria dos transportes: bicicletas, triciclos, quadriciclos com ou sem motor, motos, automóveis…
Em 1889, a exposição universal de Paris vai permitir a Armand Peugeot cruzar o caminho de Daimler, o inventor alemão de um motor a explosão, e o império automóvel Peugeot… descola!
Poissy é um recanto industrial pardacento situado a 30 km de Paris que lembra imediatamente os imigrantes portugueses atrelados, dia e noite, às cadeias de montagem automóvel, tal como Clermont-Ferrand lembra outros operários portugueses, escravos das cadeias de fabrico dos pneumáticos Michelin, tal como o grupo Bouygues lembra o lendário pedreiro português, força de trabalho despojada, disciplinada e barata, que do nascer ao pôr do sol, moureja, anónimo entre os anónimos, no meio do formigueiro das obras de todo o tamanho e feitio e das gigantescas empreitadas do nababo da construção civil.
A morte do José aconteceu em Poissy. José Gomes Macedo, 62 anos. Pelos vistos não trabalhava na Peugeot, mas nas obras. Era um operário reformado da construção civil. Vivia sozinho, abandonado de tudo e de todos. “Era um homem discreto, falava pouco e ouvia mal”, disse à imprensa um vizinho de origem magrebina, habituado a trabalhar com outros portugueses.
Alertados por um telefonema anónimo, os bombeiros foram encontrá-lo sentado num cadeirão. Estava mumificado. Morto há mais de dois anos, sem que alguém desse por ela. Os vizinhos bem se tinham queixado de que cheirava mal no patamar do andar. Mas, ora ora!, isso de cheirar mal no patamar duma banda de HLM para imigrantes… num arrabalde da cidade… não interessa nem ao menino Jesus. Depois, com o tempo, o mau cheiro acabou por desaparecer… a família daí e daqui, habituada ao silêncio, não estranhou… um silencio a mais ou a menos, qual é a diferença?
Para pouca sorte do José, o homem era um bom pagador. A renda, paga por transferência bancária automática, caía certinha nas caixas do gestor do grupo imobiliário social da cidade. De modo que, também desse ponto de vista, tudo continuava… normal.
Não havia, portanto, anomalia com o José. A anomalia só se verifica quando a renda não é paga. Então sim, surge o interesse “pela pessoa”. Vivemos uma época formidável!
Aconteceu em Poissy a meados do mês de Outubro de 2009.