Diante das dificuldades em sair da crise
“Agravam-se as tensões políticas e militares entre potências capitalistas”
Três perguntas a Henry Houben
Manuel Vaz — 24 Outubro 2009
Henri Houben é economista, membro do secretariado do grupo Attac Bruxelas 1 (www.bxl.attac.be) e investigador do Instituto de Estudos Marxistas de Bruxelas (www.marx.be).
Na primeira conferência da World Political Economics Society, realizada em Xangai a 2 e 3 de Abril 2006, centrou a sua intervenção na análise marxista da fase actual da globalização do sistema capitalista, declarando a dado momento: “O projecto europeu de relançamento da competitividade da Europa entra em conflito com a posição dos Estados Unidos da América que pretendem manter-se como a única potência hegemónica e impedir assim a emergência de qualquer outro rival. Deste ponto de vista, a União Europeia, sob direcção liberal ou social-democrata, não representa uma alternativa à dominação imperialista dos EUA. Pois não se trata de substituir um capitalismo selvagem, como o dos EUA, por um outro pretensamente mais civilizado como seria o da Europa. Trata-se sim de substituir uma classe dominante hegemónica por outra. Se nos voltamos para um passado recente, sabemos que a elite europeia demonstrou sobejamente ser capaz do pior: colonialismo, fascismo e nazismo, tudo isto coroado por duas guerras mundiais desencadeadas no mesmo século”.
Colocámos três perguntas a Henri Houben para evocar de novo o papel da Europa na conjuntura actual. Mas evocamos igualmente o plano de relançamento da economia norte-americana concebido pela administração Obama, o défice público abissal dos Estados Unidos e o seu financiamento constante pelo Japão e a China.
1. Quais são as possibilidade de sucesso do plano de Obama, um plano baseado em fortes investimentos públicos e na renegociação das dívidas hipotecárias mas que evita cuidadosamente a nacionalização dos bancos, medida-chave reclamada, no entanto, mesmo por dirigentes próximos do poder, como Roubini?
O problema é sabermos o que entendemos por sucesso. Para mim, um plano destes pode ter um efeito positivo para evitar uma situação ainda mais catastrófica. Mas não terá alcance para relançar efectivamente a economia. Esta é a opinião de peritos como Krugman, Stiglitz ou Roubini.
O montante de 787 mil milhões de dólares só compreende cerca de 400 mil milhões de despesas nas infra-estruturas, na formação, etc. (a diferença diz respeito a reduções de impostos que vão decerto melhorar a situação dos norte-americanos, mas estes vão utilizar as receitas para reduzir as dívidas). Ora, o défice de crescimento é estimado em 2 biliões para 2010.
Este é o aspecto principal da retoma. A nacionalização dos bancos permitiria estabilizar o sector financeiro. É por isso necessário também, mas não será isso que vai lançar a retoma da economia norte-americana.
2. Continua a ser o estrangeiro, e em particular a China e o Japão, a financiar o défice público norte-americano (cerca de 1,8 biliões). A queda do dólar e, consequentemente, da hegemonia norte-americana sobre a economia mundial depende da atitude política dos seus principais concorrentes. Poderá esta situação manter-se quando, por outro lado, as taxas de juros estão a baixar?
De acordo com a minha análise, os EUA – e portanto o resto do mundo – têm quatro grandes possibilidades para sair de uma situação que a crise tornou insustentável, a saber, o facto das suas contas externas (e portanto a estabilidade do dólar) dependerem da entrada anual de cerca de 800 mil milhões de dólares de capitais estrangeiros para compensar importações líquidas no mesmo valor. O problema está nas capacidades de financiamento dos planos norte-americanos de retoma ou de salvação financeira: quem os pode pagar e portanto financiar uma dívida pública que cresce muito rapidamente? Do meu ponto de vista, existem quatro possibilidades.
Primeira: são as famílias norte-americanas a financiar. Para isso devem aumentar a sua poupança líquida (que actualmente é ainda quase nula). Mas, neste caso, terão que reduzir o seu consumo privado. O que irá agravar muito claramente a crise económica, primeiro nos EUA, depois nos países exportadores. A probabilidade desta solução é muito baixa.
Segunda: não sendo as famílias norte-americanas que contribuem, deverá ser o estrangeiro (Estado e privado). É o que se passa actualmente com as contribuições, designadamente, dos bancos centrais da China e do Japão, que o fazem porque uma suspensão brutal da sua parte ocasionaria perdas avultadas para o seu sector de exportação. No entanto, as condições de financiamento são as de um crédito quase sem ganhos: as taxas de juros são muito baixas (0,5% a 1 ano, 3% a 7 anos, 3,5% a 10 anos). Todos estamos de acordo que isto não pode durar muito tempo, que o estrangeiro vai exigir, mais tarde ou mais cedo, uma remuneração mais elevada.
Neste caso – e é a terceira possibilidade –, os EUA podem decidir aumentar as taxas de juro. Se o fizerem, vão tornar o crédito mais caro e, portanto, tornar ainda mais raros os investimentos. O que provocará uma recessão ainda pior do que aquela que conhecemos neste momento. As falências correm o risco de multiplicar-se. Por outro lado, se Washington aumentar aquelas taxas, vai obrigar os outros países a fazer o mesmo, uma vez que, se não o fizerem, os capitais do mundo inteiro vão precipitar-se além-Atlântico. O que conduzirá a economia mundial para a depressão. Um cenário catastrófico que será ainda acompanhado de pesados ajustes orçamentais, porque será necessário pagar mais caro também uma dívida pública que cresce por todo o lado com os planos de retoma e de salvação financeira.
E encontramos então o quarto cenário: Os Estados Unidos renunciam à subida das taxas de juro. Mas, neste caso, o estrangeiro recusa a entrega dos 800 mil milhões necessários para equilibrar a balança de pagamentos. Basta aliás que apenas uma parte deste montante deixe de chegar para gerar dificuldades. Neste caso, o dólar corre todos os riscos de afundar-se. A sua queda irá abalar todo o sistema monetário internacional, que continua a basear-se na divisa norte-americana. Poderemos prever então a criação de blocos proteccionistas, nomeadamente na Europa e na Ásia, para impedir que as mercadorias norte-americanas possam penetrar aqueles mercados por via de um dólar que deixará de ter qualquer valor. E as consequências seriam tensões políticas e militares muito mais agudas entre as diferentes potências, em particular da parte dos EUA que seriam excluídos da Ásia e talvez da Europa.
Existe ainda uma última possibilidade que pessoalmente excluo: a cooperação
entre países para resolver as dificuldades norte-americanas. Podem existir acordos limitados, mas a característica principal das relações internacionais continua a ser a rivalidade. Em particular, a Casa Branca não vai renunciar, mesmo se a realidade económica a isso a obrigar, à posição hegemónica do dólar. Não irá aceitar que o centro do mundo se desloque para a China. Isto será fonte de conflitos futuros e não de apaziguamento.
Este (longo) desenvolvimento permite-me tornar mais precisas duas coisas em relação à questão. Primeiro, a China e o Japão não detêm as chaves do futuro económico do mundo. Washington mantém um peso considerável e não hesitará em utilizá-lo, como já o fez no passado. Depois, nem a China nem o Japão têm, hoje, a possibilidade de fazer uma escolha política. Estão demasiado dependentes das exportações. Pequim decidiu industrializar o interior do país. Mas fê-lo tarde demais (ou a crise chegou cedo demais) para poder desligar-se da situação norte-americana. Não lhe interessa assistir à queda do dólar.
3. Entretanto, o aparelho militar continua a reforçar-se, tanto nos EUA como na Europa, no quadro da NATO. A mensagem é clara: pretendem obter pela força aquilo que já não conseguem obter através de meios económicos e políticos. Podemos afirmar que, nesta matéria, a Europa de Merkel e Sarkozy prescindiu de toda a autonomia e associou definitivamente a sua sorte às capacidades de retoma e sobrevivência do império norte-americano?
A Europa não consegue entender-se. Mesmo no plano económico, embora cimentado por uma sucessão de tratados de carácter liberal, vemos que, quando surge uma crise com alguma dimensão cada um dos Estados reage no seu canto para salvar os interesses das “suas” grandes empresas, mesmo que isso signifique um desastre para o país vizinho. Nestas condições, não é possível termos uma Europa forte e portanto a única solução para Merkel, Sarkozy, Brown e Barroso é agarrar-se ao irmão mais velho norte-americano.
Mas nada nos garante que isto é definitivo. Há outras forças na Europa e é sempre difícil saber ou prognosticar quem irá dominar a prazo.
Parece-me que a aliança conservadora-liberal na Europa favorece estes comportamentos “individualistas”, “nacionalistas” e portanto o alinhamento com as posições norte-americanas. Pelo contrário, com os sociais-democratas, certas correntes conservadoras e os ecologistas, poderíamos ter uma tendência mais “autonómica”, que de novo procura a hegemonia da Europa. Não é que eu defenda isto, nem o contrário (não sinto nenhuma simpatia por qualquer daquelas correntes). Mas é possível.
Na actualidade, o patronato europeu procura sobretudo melhorar a sua posição económica, através de uma política de exploração mais intensiva com, nomeadamente, os cortes na segurança social, a redução dos salários e a flexibilidade no trabalho. Nestes planos, os liberais e os conservadores formam a melhor coligação para aplicar políticas e estratégias que agravam a situação dos assalariados e pensionistas.
Mas isto pode mudar e, com a crise, talvez muito rapidamente. Se o dólar cair, apesar da grande amizade de Merkel, Sarkozy e companhia pelos EUA, terão que bloquear a entrada de produtos que não terão quase valor algum por causa de uma divisa desvalorizada e isso dará inevitavelmente origem a tensões muito graves.
O que é determinante não é a simpatia deste ou daquele dirigente. São os interesses fundamentais da classe no poder na União, a saber, a grande burguesia europeia.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgonçalves 27/10/2009, 11:13
Mais um espírito iluminado no panorama crítico do marxismo actual. O discurso é elucidativo pelo poder de abstracção revelado: "As famílias americanas", "os amigos políticos europeus" o definhamento do dólar e a passagem do país de colonizador e imperialista a país colonizado pelo dólar a pataco etc. Para confrontar este tipo de discurso marxista, atrevo-me a recordar uma passagem de um artigo publicado pelo Renmin Ribao em Janeiro de 1970 que, lida hoje, até parece profética a propósito da política externa soviética: "O revisionismo soviético considera os países da "comunidade socialista" como um feudo, mas de modo nenhum será capaz de impor duradouramente uma dominação colonial aos povos desses países. A Europa oriental de hoje é um barril de pólvora que há-de, tarde ou cedo, estoirar. Longe de constituir uma prova de poderio, a entrada dos tanques em Praga não faz mais que pressagiar o começo do desmoronamento do império colonial revisionista soviético".
Como se pode concluír, existe uma grande diferença na análise em relação ao método. E é aí que a "porca torce o rabo".
•mraposo 28/10/2009, 16:29
Não consigo perceber o sentido da crítica que Afonso Gonçalves faz às declarações de Henry Huben. É errado o quadro que ele traça sobre a crise do capitalismo? É falso que o imperialismo norte-americano esteja em declínio? Qual é o problema do seu discurso marxista?
Gostaria de entender.
Manuel Raposo
•afonsomanuelgonçalves 29/10/2009, 11:43
Não se trata do problema da exposição, mas sim do método usado para a sua abordagem, é isso que eu saliento e não o conteúdo das declarações, que geralmente são feitas da mesma maneira por qualquer intelectual burguês minimamente honesto. Vemos estes pontos de vista, como p.ex. o declínio do imperialismo norte-americano e outros factos da crise capitalista, serem frequentemente aflorados nos vespertinos burgueses de qualquer país europeu. No entanto, como referi o uso da abstracção levada a certos limites ultrapassa o método de análise marxista. A leitura desta entrevista, por vezes, sugere-nos uma previsão astrológica caleidoscópica onde tudo pode acontecer inclusivé aquilo que a priori parece absurdo. Ora, não era assim que Marx analisava a história. Ele mesmo, como sabemos, atacou com tenacidade alguns críticos que vestiam roupagens muito revolucionárias com inflamados chavões sempre na ponta da língua. A minha crítica ainda que um pouco disfarçada, e nisso concordo com a observação de Manuel Raposo, tem a ver com o "método" que, tal como Marx refere na Miséria da Filosofia e não só, constitui a pedra angular para se fazer qualquer estudo de um determinado problema. Daí a passagem de um artigo da revista, por mim citada, como termo de comparação.