”Estamos no começo de um longo período de perturbações e de revolução social”
Três perguntas a Tom Thomas
Manuel Vaz — 21 Setembro 2009
Tom Thomas é um economista marxista prolixo que nos últimos vinte anos publicou livro atrás de livro sobre as mutações capitalistas nos diferentes sectores da sociedade contemporânea (o trabalho, a mundialização, o Estado, o programa de transição para o socialismo, o capital financeiro, as crises cíclicas, o fascismo, o indivíduo…). A sua análise teórica, rica e variada, constitui, como o próprio autor diz, “um comentário actualizado de Marx”.
Faz dez anos que, Tom Thomas escreveu A hegemonia do capital financeiro e a sua crítica (ed. Albatroz, Paris, 1999; e ed. Dinossauro, Lisboa, 2000). O autor atacava a questão do dinheiro (moeda, capital, juros, lucro, etc) – esse imenso fetiche, essa “força misteriosa que parece ter vida própria e decidir do bom ou mau tempo no mundo capitalista”. E repetia, recordando Marx, que não há, por um lado, o “mau” capital de rapina e, por outro, o “bom” capital criador de riqueza; capital financeiro e capital industrial são duas formas complementares do sistema de acumulação, “não há qualquer fronteira, senão artificial, entre crédito e especulação, entre capital financeiro e desenvolvimento industrial e comercial. Existe um único sistema de acumulação do capital que só pode desenvolver-se pela especialização dos diferentes ramos, financeiros, industriais, comerciais, etc”.
Em 2007, esta forma autonomizada do valor, transformada pela especulação em “bolhas financeiras” – “elásticas, fluidas, sem rigidez nem materialidade” – vai fazer emergir a imensa crise que percorre subterraneamente desde os anos 70 o processo de produção capitalista: crise de sobreprodução, desajustamento entre produção e consumo. Na esfera financeira, o ponto de partida inicial, a crise declarou-se com a ruptura brusca do sistema de crédito imobiliário norte-americano, esse crédito generalizado e hiper-desenvolvido denominado subprimes. O krach financeiro que se segue induz, como tentativa capitalista de superação da crise, destruições massivas de capital e trabalho duma violência ímpar! Presentemente, os encerramentos de empresas, com o consequente cortejo de despedimentos, são, para a população trabalhadora, a ameaça mais banal, a agressão mais chocante.
Em Setembro próximo Tom Thomas publicará um novo ensaio dedicado precisamente à análise da crise actual, intitulado La crise. Laquelle? Et après? (A crise. Qual? E depois?).
Encontrámo-nos com Tom Thomas para evocar, de novo em três perguntas, o papel do capital financeiro e as perspectivas de evolução da sociedade civil.
1. Como tu sublinhaste, é na esfera da produção, no desfasamento entre a produção e o consumo que tem de se procurar a causa profunda da crise sistémica iniciada nos anos 70. No entanto, como caracterizar o papel singular que o capital financeiro vai desempenhar no desfecho de uma crise que conduz o mundo capitalista ao caos actual?
O capital financeiro, para ser breve, é o conjunto dos títulos de crédito (que representam o dinheiro adiantado para investimentos, produtivos ou especulativos, pouco importa aqui). O crédito actua sobre a valorização e a reprodução do capital como uma droga sobre um drogado: exalta-o, estimula-o, torna-o eufórico… num dado momento. Depois vem a crise. O doente injecta-se com nova dose e assim por diante até à overdose: o grande krach! (A metáfora pára aqui porque o capital nunca morre por si mesmo).
Ora, quanto maior é a massa de títulos financeiros, mais a parcela de lucros que cada título pode receber tende a diminuir. E diminui, de facto, com a sobreprodução de mercadorias invendáveis que o crescimento do crédito necessariamente provoca. Em suma, o crédito é uma droga que aumenta por determinado tempo o crescimento da produção e do consumo.
Acelera o crescimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, acelera o crescimento das suas contradições, que o arruínam. Entre as quais, em particular, esta: de um lado, sobre-acumulação de meios de produção; e, simultaneamente, um menor crescimento da massa salarial, do outro lado (subconsumo).
O capital financeiro (o crédito) não é, de modo algum, a causa desta contradição inerente à acumulação do capital (isto é, ao “crescimento”). Ele é apenas um acelerador.
2. Que dizer de Bernard Madoff, um dos símbolos mediáticos do krach financeiro e bolsista norte-americano – pesadelo tornado realidade para o grande público quando se deu o tsunami dos subprimes em Julho de 2007? Condenado a 15 penas perpétuas debaixo de aclamações do público, este ex-herói da finança não percebe porque deve ser ele só a pagar por um sistema financeiro baseado numa “pirâmide” à escala mundial.
Não há nada a dizer, em especial, de Bernard Madoff: a especulação, a fraude, as actividades mafiosas são consubstanciais ao capitalismo, aos seus agentes, aos seus Estados. A sua história está cheia disso. Madoff é apenas um entre milhares.
3. As condições materiais estão maduras, desde há muito, para uma mudança radical da sociedade. Mas as classes protagonistas, actrizes da mudança, não se apresentam ao encontro com a História e o mundo capitalista afunda-se cada vez mais na degenerescência. Partilhas da opinião do economista Samir Amin que enuncia uma outra alternativa: a possibilidade de “o capitalismo ser ultrapassado pela destruição da civilização e talvez da vida no Planeta”?
Existe, de facto, a possibilidade de o capitalismo produzir a destruição da humanidade. O seu nível de barbárie e as suas capacidades de destruição não param de crescer à medida que ele próprio cresce. Mas essa não é a única possibilidade. O Apocalipse é um velho mito que tem, por vezes, a função de mascarar o futuro que os homens podem produzir. Seria totalmente errado não ver e não destacar que o capitalismo teve o mérito de criar as condições que permitem ultrapassá-lo, as condições de uma sociedade de indivíduos livres, sem classes, sem dominação estatal, senhores do seu desenvolvimento.
Não posso desenvolver este ponto no quadro desta breve entrevista como fiz nos meus livros. Notemos apenas que não existe nenhuma razão para se pensar que os proletários do mundo inteiro tenham dito a sua última palavra. Pelo contrário, pode constatar-se que as resistências crescem por todo o lado, que a grande burguesia suscita uma hostilidade crescente nas massas. Mesmo nos países mais desenvolvidos, como em França por exemplo, torna-se pouco a pouco mais claro aos olhos das massas que o capital já só pode dar-lhes cada vez menos emprego. Que quanto menos o capital se pode alimentar delas, menos pode alimentá-las com as migalhas que recebiam, até agora, do “crescimento”. Enquanto os ricos continuam a encher-se o mais que podem, começando a murmurar: depois de nós, o dilúvio! Sim, é preciso que se saiba: muitos de entre eles têm medo, por saberem que a situação lhes escapa da mão.
Portanto, é certo que haverá destruição. Mas de quê, de quem? A situação actual torna progressivamente mais clara a escolha que se coloca aos proletários: ou serem destruídos pelo capital, ou destruí-lo. Por que motivo se há-de imaginar que eles não sejam suficientemente razoáveis para escolherem a segunda solução?
De facto, a fórmula do “encontro com a História” enunciada na pergunta é inadequada. Não existe um dia e uma hora. O que começa é um longo período de perturbações e de revolução social que, com altos e baixos, derrotas e vitórias, se estenderá por vários decénios. O que começa é a necessidade de ultrapassar os primeiros grandes obstáculos à constituição dos proletários como classe independente, tais como: a ideia de que o Estado poderia não ser capitalista com um governo de esquerda, que a organização de um partido revolucionário comunista não é uma necessidade, que a luta de classes não precisa da teoria marxista, etc…
E, como se trata dos primeiros passos do início de um longo período, é portanto muito cedo para admitir a derrota dessa revolução social e a “destruição do Planeta” que poderia seguir-se-lhe.
(Depoimento recolhido em 26 Agosto 2009)
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgonçalves 24/9/2009, 14:23
Parece-me que de facto T. Thomas tem razão: A pergunta formulada de acordo com a teoria de Marx e Engels não tem muito sentido. É a destruição enquanto tal um sujeito histórico? Parece-me que não, tal como a Razão em Hegel, embora muito mais próxima de Marx, também não o é. Não percebo porque T.Thomas caíu, em certo ponto, na ratoeira idealista de Samir Amin. Os sujeitos históricos, sabemos hoje, não são abstracções, mas realidades concretas das sociedades muito complexas que determinam quer o presente, quer o futuro da própria história. Além disso, até o próprio Universo pode comprometer tudo. Sobre o fim da humanidade existem estudos muito interessantes de Kant, Engels, Marx e Mao Tsé Tung que, evidentemente, Samir Amin não toma em consideração, porque não conhece ou porque despreza e tem todo o direito de o fazer. O problema que se põe é diferente: porque razão T. Thomas não contrapôe a teoria marxista contra esta senil concepção da história? Será que o capitalismo senil é como a gripe A do virus H1N1 e já nos atingiu a todos?
•assinantemudardevida 3/10/2009, 14:31
Está bom este comentário de Afonso Manuel Gonçalves, mas haveria ainda pano para mangas.
Acerca não só disto, como de Eleições, estranha-se que o editorial destas se encontre no mês de Junho e não no de Setembro (ou Outubro). Concordo muito com o comentário feito por J.M.Luz (?) cuja pequena parte transcrevo abaixo:
"Para que não haja dúvidas a esse respeito passo a citar uma breve passagem do programa eleitoral do PCP/CDU, e que não difere do programa do B.E.
Vejamos só o que o PCP entende e propõe como objectivos, de RUPTURA, PATRIÓTICO e de ESQUERDA.
Passo a citar:”Um programa de RUPTURA, PATRIÓTICO e de ESQUERDA, que contrapõe às políticas económicas ao serviço do grande capital, uma nova política de desenvolvimento económico ao serviço do País e que tem como objectivos centrais: O pleno emprego como a grande prioridade; O crescimento económico, pelo aumento significativo do investimento público e da eficácia e eficiência na utilização dos fundos comunitários, pela ampliação e dinamização do mercado interno, acréscimo das exportações, aumento da competitividade e produtividade das empresas portuguesas e a defesa e afirmação do aparelho produtivo nacional como motor do crescimento económico”.
Como se pode verificar, trata-se de um conjunto de objectivos que não só estão contra os interesses do proletariado, como aprofundam a sua exploração e a sua miséria social e que se configuram plenamente nos objectivos dos partidos do capital, como do próprio sistema capitalista.
Portanto, quando se quer intervir e produzir algum APELO, caso do MV, deve-se de ter o cuidado, não só de analisar e chamar a atenção para as forças do capital, mas também para aqueles que com ele conluem e que em todos os momentos da vida procuram enganar os trabalhadores.
Seja qual for o resultado eleitoral, ou o governo a constituir, seja de BLOCO CENTRAL, ou P”S”/B.E. ou qualquer outro, ele será sempre um governo REACCIONÁRIO e que terá como objectivo, ATACAR a crise em que o capitalismo português está ATOLADO, criando condições necessárias de salvaguarda dos interesses do capital e obrigando os trabalhadores a pagar a crise.
Assim, o mais importante era denunciar esta situação à massa trabalhadora, e propôr-lhe um programa MÍNIMO de LUTA em torno dos seus problemas concretos e imediatos, devidamente SUSTENTADO, não só do ponto de vista orgânico, como politico."
Decididas que foram as eleições burguesas capitalistas, mantém-se a actualidade desse comentário.
Bom trabalho para o Mudar de Vida, mas com atenção a estes comentários que não se podem colocar atrás das costas, vista a luta de classes que se avizinha...