9 a 10% da população activa
Imigrantes rendem milhares de milhões de euros à economia francesa
Três perguntas a Albano Cordeiro
Manuel Vaz — 2 Setembro 2009
Albano Cordeiro é engenheiro reformado do CNRS (Centre Nationale de Recherches Scientifiques), doutor em economia e ex-docente da Universidade Paris VIII, especializado em questões identitárias e migratórias, mormente no seio da comunidade portuguesa em França, tema de pesquisa que sempre captou a sua atenção.
Como autor, os seus trabalhos, tanto pessoais como colectivos, incidiram igualmente sobre as transformações sociais e económicas observadas no seio das jovens gerações oriundas de uma primo-imigração.
Em 1981, o Office Municipal des Migrants de Créteil, publicou-lhe uma obra importante, Pourquoi l’immigration en France? Critique des idées-reçues en matière d’immigration, que, uma vez ampliada e enriquecida, seria reeditada pelas edições La Découverte em 1983, 1984 e 1987.
Sobre a actualidade política da emigração e o seu papel específico no modo de funcionamento da extracção de mais-valia capitalista, pusemos-lhe 3 perguntas.
1. Actualmente, qual é o peso do conjunto dos trabalhadores imigrantes e em particular da fracção dita “clandestina” no mercado de trabalho francês? Na conjuntura actual, que benefício económico essencial retira a classe dirigente da exploração desta fracção da classe operária?
Por definição, o número de “clandestinos” escapa a toda a estatística, excepto se são apanhados nas rusgas da polícia a fim de serem expulsos (1). O número de “clandestinos” (irregulares, indocumentados, sem-papeis…) só pode resultar de uma estimativa. E, em geral, quando se fala de estimativa isto significa que entramos no reino das crenças que os médias alimentam sem fim. Em França, a estimativa corrente, tanto do lado governamental como do lado das organizações sindicais e políticas, é da ordem dos 400 mil “clandestinos”.
Nos anos 80, fixou-se durante um certo tempo esse número em 300 mil. A grande regularização dos “clandestinos” encetada pelo primeiro governo socialista, se bem que bastante acessível para os interessados, saldou-se em pedidos de regularização que não ultrapassaram a metade da estimativa então em vigor. Mesmo admitindo que uma parte dos interessados não apresentou voluntariamente pedido de regularização, reconhece-se que havia então sobre-estimativa do número de “clandestinos”.
Pessoalmente penso que, presentemente, o número real deve rodar os 600 mil. Trata-se de um cálculo, um cálculo “elevado”. Isto quer dizer que nos encontramos perante um assunto importante e que tem de ser encarado com seriedade. Este número alto corre o risco de ser utilizado para “meter medo” pois os médias associam a irregularidade dos imigrantes aos “tráficos diversos”, ao “terrorismo potencial” ou a um outro fantasma muito corrente: “essas pessoas vieram para cá para viver à custa dos abonos sociais”….
A estatísticas mais fiáveis relativas ao mercado de trabalho provêm dos Recenseamentos de População, que têm lugar de dez em dez anos. Acontece que, em França, o último data já de 1999, e o próximo ainda está a caminho e os primeiros resultados só serão divulgados dentro de um ano.
Vejamos agora os problemas ligados a terminologia. São considerados trabalhadores imigrantes (ou imigrantes, para simplificar), todos os trabalhadores que residem em França, nascidos num país estrangeiro e de pais não franceses. Por conseguinte, estão incluídos igualmente nesta categoria todos os naturalizados. O Recenseamento de 1999 apontava o número de 2,294 milhões de imigrantes activos que correspondem a 8,6% da população activa (isto é, 1 em cada 11 ou 12 activos, são imigrantes).
Estamos perante números demasiado globais, já antigos e insuficientes para julgar da importância desta mão-de-obra, pois a repartição entre imigrantes e não-imigrantes varia substancialmente de um para outro sector de actividade. Destes imigrantes activos, 35% eram de nacionalidade francesa. Se fixarmos a população activa actualmente em França em 27 milhões, a percentagem dos imigrantes (regulares e sem-papéis) deverá rondar os 9 a 10%.
Quais são os benefícios que resultam da utilização da mão-de-obra estrangeira em situação irregular (“clandestina”)? O emprego dissimulado (vulgarmente chamado travail au noir) é uma prática corrente em França. Teoricamente os “clandestinos” não podem ser assalariados de uma empresa, mas ilegalmente… ou legalmente (com falsos papéis de identidade) o facto é frequentemente reconhecido pelas direcções das empresas. O “não-conhecimento” do estatuto do emigrante confere-lhes uma certa impunidade perante a lei, contrariamente ao “clandestino” que é automaticamente punido. Em vez de “patrão clandestino” fala-se de “trabalhador clandestino”.
As vantagens para o patronato são evidentes. Ou bem que há um contrato de trabalho declarado (com outro nome) e portanto sujeito às normas legais que regem o trabalho assalariado (salário mínimo, contribuições sociais) ou bem que não há. Neste caso, o patrão paga um salário que pode ser igual, ou próximo, do nível salarial pago no mesmo ramo de actividade. O benefício extra encontra-se na parte das contribuições sociais (salariais e patronais) que não são pagas aos organismos de protecção social. Isto é, o resto do salário chamado “bruto” transforma-se em lucro líquido para a empresa.
Pode-se acrescentar que esta “ajuda” (forçada) dos trabalhadores clandestinos ao patronato salva muitos deles de situações difíceis, de falências que gerariam desemprego também para trabalhadores “legais”, franceses ou não. A economia no seu todo beneficia desta situação, porque produtos e serviços de sectores em crise mantêm-se em actividade. De um outro ponto de vista, liberal já se vê, se as empresas em questão têm dificuldades ao ponto de fazer apelo ao emprego “clandestino” é porque são pouco viáveis. Assim sendo, o recurso aos recrutamentos clandestinos prolonga a vida dessas empresas que deveriam desaparecer segundo a “lei natural do mercado”.
Os benefícios para a economia, mesmo tendo em conta um desemprego relativamente forte entre os “clandestinos”, que pode ser estimado no dobro da taxa oficial para os trabalhadores legais, são enormes: corresponderá a milhares de milhões de euros por ano. Mas esta contribuição para a economia permanece desconhecida. Ela é simplesmente ocultada.
Verifica-se no entanto, que a Segurança Social encaixa as cotizações sociais, mesmo de “clandestinos” que declaram a sua verdadeira identidade (desde que não haja verificação da existência de um autêntico contrato de trabalho). Este facto tornou-se conhecido aquando das greves dos sem-papéis de 2008 na região parisiense. São, portanto, cotizações muito bem acolhidas, tanto mais que a situação deficitária da Segurança Social é crónica.
Se tivermos em conta os casos de contratos com nomes de empréstimo e os de contratos em nome próprio (que dão origem uns e outros a contribuições sociais), é possível que os casos de recrutamentos sem contrato escrito (que não dão origem a contribuições sociais), sejam minoritários (2). Mas faltam estudos que o permitiriam afirmar.
Se avaliarmos em 250 mil o número de trabalhadores que pagam cotizações sobre 340 mil em actividade (60 mil em desemprego dito de “fricção”, isto é, com um tempo relativamente curto entre duas contratações), as receitas da Segurança Social (na base de 400 euros por mês) poderiam ser da ordem de 1,2 mil milhões de euros por ano (3). Se as receitas para a economia das empresas e da Segurança Social são pouco quantificáveis, o cálculo das receitas do Estado provenientes dos “clandestinos” é parcialmente mais acessível. O cálculo das receitas do Estado provenientes dos residentes “clandestinos” é igualmente difícil. É o caso do IVA, pago através das compras necessárias para viver, sem falar dos casos em que o imposto de rendimento pessoal se aplica (questão de nível de rendimentos, que geralmente são insuficientes para serem sujeitos a este imposto). As somas pagas em impostos locais são também desconhecidas. A própria regularização dos “clandestinos” é ela também uma fonte de receitas para o Estado (exames médicos pagos, taxas diversas).
2. Abordemos agora a questão do movimento de solidariedade, objecto de tantas controvérsias. Se observarmos, por exemplo, o percurso de uma organização dita solidária, como é o caso de SOS Racisme, constatamos que ela serviu, e serve essencialmente, como trampolim político para os seus dirigentes mais em vista. Que balanço sucinto fazes do movimento de apoio e de solidariedade com os imigrantes, em particular durante a época Sarkozy?
SOS Racisme fez a sua primeira aparição pública em Dezembro de 1984 no momento em que a Convergência 84 pela Igualdade rematava a sua iniciativa – cinco marchas vindas da província convergindo sobre Paris, percorridas em motocicletas – com uma manifestação de rua em Paris. Na construção deste movimento anti-racista nacional convergem interesses vários, de que se destaca o carreirismo político de um dos seus fundadores, Julien Dray. Antes de aderir ao PS, Dray, era um membro destacado da organização trotskysta LCR (Liga Comunista Revolucionária), e um dos dirigentes de uma tendência da UNEF (União Nacional dos Estudantes de França) onde militavam membros e simpatizantes da Liga Comunista Revolucionaria e do PS (4).
SOS Racisme aparece, pois, como uma tentativa de hegemonia na liderança da frente de luta contra o racismo e pelo reconhecimento da igualdade e dignidade dos jovens descendentes de primo-imigrantes, dinâmica essa criada em1983 com o chamado movimento dos beurs (jovens de origem magrebina). Este movimento tem a sua origem nos protestos contra as agressões racistas de que são vitimas os jovens beurs e reivindica a igualdade de direitos, pelo menos em palavras. As numerosas dissensões nas fileiras dos participantes na Marcha sobre Paris, que se vão revelar nos meses seguintes à chegada, vai favorecer o crescimento rápido de SOS Racisme.
A tentativa de Convergência 84 de dar uma outra orientação ao movimento – a de uma França pluricultural – fracassa em consequência de divergências entre uma parte dos jovens magrebinos e os restantes participantes. A componente portuguesa, se bem que importante na iniciativa de Convergência 84, ficara marginalizada por falta de meios mediáticos. O terreno ficara livre para a recuperação política levada a cabo por SOS Racisme com o apoio declarado dos meios governamentais afectos ao Partido Socialista. Sob a batuta desta organização, o tema da mestiçagem e o discurso moralista sobre o racismo vão ocupar então a cena pública e mediática.
Com a época Sarkozy (2004-2009), assiste-se ao reforço da política restritiva da imigração, ao agravamento da repressão dos “clandestinos” com a chamada politique du chiffre (objectivos numéricos para as expulsões), que levam à multiplicação das rusgas policiais nos locais públicos. Convém saber que para se atingir 25 mil expulsões é preciso preparar o dossiê de 70 a 75 mil pessoas, pois nem sempre o processo de expulsão vai até ao seu termo. Assim, o custo médio duma expulsão é particularmente elevado (5). A deputada Georges Pau-Langevin, cifrou-o em 2.186 euros por cabeça. E igualmente uma política de detenção física dos “clandestinos” em vias de serem expulsos (ou libertados, porque os dossiês são anulados pelos tribunais, ou porque os consulados não fornecem os documentos necessários para tal). Fazem-se obras nos centros de detenção administrativa para poder “acolher” todas as vítimas das rusgas policiais ou dos controles na fronteira. O número médio de pessoas detidas diariamente passou de 370 em 2002 a 840 em 2005 (ano em que Sarkozy foi ministro do Interior).
Esta política repressiva atinge numerosas famílias, inclusivé numerosas crianças em idade escolar. Este facto vai dar origem a um movimento social específico, o Réseau Education Sans Frontières, que é o exemplo mais encorajador na cena política francesa dos últimos anos. Esta rede de apoio é constituída essencialmente por professores e pais e mães de família, globalmente pouco numerosos (mas, apesar de tudo, na ordem de milhares), muito activos e obtendo frequentemente vitórias na luta contra a repressão que se abate sobre as famílias dos “clandestinos”. O movimento social Amoureux au Banc Public, de auxílio aos noivos “clandestinos” (mistos ou estrangeiros) é também de assinalar como uma reacção sã da parte da sociedade civil francesa.
3. A luta dos sans papiers é um combate que recomeça sem fim. E por vezes essa luta pode voltar-se contra organizações que em princípio têm como missão defendê-los. Como julgas a agressão cometida pelo serviço de ordem da CGT contra os sans papiers que ocupavam parcialmente a Bolsa de Trabalho desde há 14 meses?
A agressão do “serviço de ordem” da união departamental CGT 75 é indefensável! O que se passou depois mostra bem que outras soluções teriam sido possíveis. No passado 17 de Julho, isto é, pouco mais de três semanas após a tal expulsão, os “clandestinos” que acampavam na rua encontraram refúgio num grande edifício desabitado pertencente ao Comité de Empresa da Segurança Social, no 18.° bairro parisiense.
Se bem que arriscada, havia igualmente a possibilidade de uma queixa em tribunal para que as autoridades públicas tomassem medidas em matéria de alojamento. Ora a união departamental CGT decidiu “resolver” ela própria o problema utilizando a força contra pessoas sem defesa e em situação precária (6).
O argumento de que os ocupantes eram pessoas irresponsáveis, agindo “objectivamente” em benefício dos “inimigos de classe”, discurso que serve para justificar o uso da força, é mais que discutível, é inaceitável. Com efeito, havia recriminações concretas, cuja oportunidade podia ser contestada, mas que não podiam ser abafadas com ligeireza: o papel da união departamental CGT 75 de se substituir à Prefeitura na selecção dos dossiês que deveriam ser tomados em consideração para uma regularização efectiva foi objecto de muitas críticas. Acrescente-se ainda o comportamento do serviço de ordem da CGT na manifestação do 1.° Maio 2008, hostilizando os sans papiers. Estes e outros argumentos devem ser recordados nesta ocasião.
Testemunho recolhido em 28 Julho 2009
Notas
(1) Curiosa consequência: o único número seguro é o dos “clandestinos” apanhados mas que, depois de terem passado pelo aparelho policial e judiciário, acabam por não ser expulsos… Trata-se naturalmente de uma pequena parte, mas a evolução anual deste dado pode dar indicações sobre a evolução da massa dos “clandestinos”.
(2) Os dados que datam de 1992, 1994 e 2002, permitem afirmar que as infracções catalogadas como “trabalho dissimulado” (travail au noir) assinaladas pela Inspecção do Trabalho, em dois terços dos casos põem em causa as empresas da construção civil e trabalhos públicos, do comércio, da hotelaria e restauração, da agricultura e da confecção. Globalmente, os trabalhadores em posse de documentos de estadia legal ou carta de identidade francesa representavam 82% dos casos. Apenas 17% eram trabalhadores sem documentos de estadia legal (documento PCF de Setembro 2003).
(3) De um apelo a uma concentração diante da Embaixada de Marrocos, datado de 29 Abril 2009, assinado por 40 organizações de defesa dos direitos dos imigrantes e partidos políticos para protestar contra as facilidades com que esta embaixada emitia os documentos necessários à expulsão dos sans papiers. As receitas dos organismos de Segurança Social proveniente destes trabalhadores (de todas as origens) são estimadas em 2 mil milhões de euros, mas sem a dedução da taxa de desemprego e dos casos onde não existe contrato.
(4) A criação de Sos Racisme está associada igualmente à União dos Estudantes Judeus de França (UEJF). Poder-se-ia explicar esta associação pela vontade de alargar a temática do anti-racismo no meio dos jovens de origem imigrante, principalmente magrebinos, suspeitos de não darem a devida importância ao anti-semitismo.
(5) – Em Mouvements, uma revista de esquerda (http://www.mouvements.info/Sans-papiers-l-autre-chiffre-de-la.html), de 2 de Julho de 2009, avalia-se o custo das expulsões, entre 2003 e 2008, em cerca 3 mil milhões de euros, isto é, o mesmo montante do défice da Segurança Social em 2007!
(6) Nos anos 90 (período em que a Esquerda Plural se encontrava no governo), a sede do partido dos Verdes foi igualmente alvo de uma ocupação das suas instalações pelos trabalhadores sans papiers. A ocupação durou vários meses e terminou sem recurso à força.